Pode a Arte encontrar-se com o Comum?

"Noiva", da fotógrafa colombiana Évelin Velazquez. Ela integra o coletivo Casa Tres Patios, de Bogotá -- um dos "nós" do Colaboratório das Artes

“Noiva”, da fotógrafa colombiana Évelin Velazquez. Ela integra o coletivo Casa Tres Patios, de Bogotá — um dos “nós” do Colaboratório das Artes

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Ou: o dia em que conheci o notável Colaboratório das Artes, uma rede de organizações artísticas que busca trocar o egocentrismo pela produção coletiva e o debate permanente

Por Georgia Nicolau

MAIS:

Texto em três partes: leia as duas primeiras abaixo

A dura — e indispensável — construção dos Comuns

Claramente anticapitalista, ideia de proteger das lógicas de mercado cada vez mais aspectos da vida precisa tornar-se popular. Como fazê-lo?

Comuns: a Holanda constrói com cuidado

No centro do país, uma cooperativa assume ações de assistência antes executadas pelo Estado e enfrenta o desafio de manter o caráter público dos serviços, introduzindo a participação direta dos usuários.

O encontro com a rede Colaboratório das Artes (Arts Collaboratory-AC) foi a grande surpresa de minha participação pelo Instituto Procomum na 16ª Conferência Bienal da Associação Internacional para os Estudos do Comum (International Association for the Study of the Commons- IASC)  entre os dias 10 e 14 de julho deste ano na Holanda. Já tinha ouvido falar da rede e sabia que envolvia centros culturais e artísticos de vários países, mas ignorava que eles se utilizavam do conceito de comum como valor central. Como se espera de um coletivo de artistas, quando cheguei à oficina liderada pela rede notei que haviam mudado o formato e a estética da sala.

A IASC é uma conferência bastante tradicional nos formatos, resquícios de sua origem acadêmica. Os labs de praticantes, como eram chamados os espaços onde os comuneiros apresentavam suas experiências a partir da prática (e não da academia), eram mais dinâmicos, mas ainda assim seguiam o formato expositivo. No encontro da AC, no universo da arte, tudo era bem diferente.

Na oficina da AC havia painéis e papéis grudados na parede. Entre eles, os princípios éticos da rede (que eram também escritos em meias que eles depois doaram aos participantes), que eles chamam de trabalho em desenvolvimento (work in progress).  Entre eles destaco as que mais me chamaram atenção: imaginação radical, autocuidado, micropolítica, decrescimento, abertura, auto-organização, solidariedade, hospitalidade, estudo. Veja todos aqui.

arte comum

O encontro da rede translocal e transnacional Arts Collaboratory (AC)

Começamos ouvindo uma apresentação sobre o que era a Arts Collaboratory e quem dela participava: uma rede translocal de 25 organizações espalhadas pelo mundo, todas focadas em artes e processos de mudança social. Das 25, dez estavam presentes na oficina. O tema do dia era: vivendo o ritmo do comum; ou como sustentar uma rede auto-organizada de organizações culturais baseadas no comum?

Os participantes foram divididos em grupos menores, organizados por língua, uma questão importante para a rede, que se define como translocal e transnacional. “Resistimos ao inglês, embora o usemos”, disse Farid Rakun, coordenadora do Instituto Ruangrupa, na Indonésia, um dos nódulos da rede AC. A metodologia sugerida implicava que cada grupo tivesse um anfitrião, uma pessoa responsável pela colheita, uma guardiã de processo e outra guardiã de intenções para debater os temas propostos e depois voltar para a plenária.

Os temas sugeridos foram dois:

1) A Curiosa Economia da Arte

  • Quais são os “comuns” – os recursos comuns – que organizações de arte e cultura ou suas redes geram? Que tipo de valores eles têm, e como eles são gerenciados, especialmente quando não são bens materiais e não possuem valor monetário?
  • Como o financiamento público ou privado influencia o trabalho de organizações artísticas e culturais baseadas no Comum? Quais são as suas visões para a continuidade/ sustentabilidade do seu trabalho?
  • Como se dá a produção, gestão e manutenção dos bens comuns em nível translocal? Como compartilhar recursos igualmente em diferentes contextos econômicos e geopolíticos?

2)  Os comuns como modalidade de vida (lifeline)

  • Como imaginar trabalhar em conjunto como uma rede fora dos modelos institucionais existentes (legais, políticos, econômicos)? Que outras modalidades precisam ser criadas a fim de estabelecer uma imaginação radical em relações ecossistêmicas?
  • Como manter uma conectividade profunda em meio a um regime de mobilidade restrita (problemas com visto, alto custo de viagem e políticas de (i)migração restritivas?
  • No que diz respeito a um ecossistema de organizações artísticas e culturais que trabalham em nível translocal e transnacional, como gerenciar a tensão entre o Comum e a comunidade?

Senti alegria e um certo alívio em ver refletidas muitas das inquietações e reflexões que estamos fazendo na construção do Instituto Procomum e do nosso Lab Santista (LABxS).

Após a divisão dos grupos, voltamos à plenária e todos compartilharam suas experiências diante do público mais amplo. Toda a documentação da oficina está disponível neste link.

Na oficina, ficamos sabendo que haveria o lançamento de um livro sobre arte e o comum editado pela Academia de Belas Artes de Viena sob o nome de Spaces of Commoning: Artistic Research and the Utopia of Everyday (Espaços de comunhar: pesquisa artística e a utopia cotidiana) na Casco, organização que compõe a rede AC e que também estava como apoiadora da conferência da IASC, organizando o programa voltado para as Crianças e o Comum.

Casco, uma organização em transição

Se, no entanto, consideramos a arte como um campo proeminente para o desenvolvimento de aspirações contra-hegemônicas e visões contra-dominantes para a sociedade, então a arte deve ser reapropriada como um campo crucial de comunhar (commoning). Não se trata de compartilhar o que já é reconhecido como arte, mas de escolher repensar, reavaliar e talvez refazer o que é tomado e apreciado como arte. É assim que o trabalho artístico pode fazer um gesto para a descoberta de novas maneiras de estar em comum. Se a arte pode ser um campo de experimentações que expandem e desafiam os padrões estabelecidos de sentimento e pensamento, então a prática da arte-como-comum pode explorar padrões de sentimento e pensamento moldados em comum.

(Stavros Stavrides em Emancipatory Commoning?– trecho traduzido pela autora)

Quando cheguei à sede da Casco, deparei-me com uma exposição que continha excertos retirados de livros sobre o comum (como este logo acima), instalações, vídeos, painéis, trechos de conversas e documentos internos da equipe do instituto. Fui entendendo aos poucos que se tratava da documentação de um processo que havia começado muito antes da exposição. E era exatamente isso: a exposição documenta e materializa uma fase da transição da Casco – escritório para Arte, Design e Teoria para Instituto de Arte Casco: Trabalhando para o Comum (Casco Art Institute- CAI). A transição se iniciou em 2014 com um projeto chamado Compondo os Comuns que incluiu uma série de experimentos artísticos, mas também organizacionais como o projeto “Lugar para Desaprender: Organização de Arte”. Creio que o excerto do livro abaixo, em livre tradução feita por mim, traz uma visão do que se tratou::

Limpando juntos

Exercício de desaprender:

Limpamos nosso escritório juntxs toda segunda de manhã. Dividimos as tarefas, às vezes colocamos música e colocamos o tempo de 30 minutos.

O que desaprender:

Subvalorizar o trabalho reprodutivo; hierarquias e divisão desigual no trabalho doméstico em termos de quem faz o que; e tornando o trabalho reprodutivo a última prioridade e não sentir satisfação em fazer.

Em “Espaço de Desaprender”, Time da organização Casco e a artista Annette Krauss. Livro: Spaces for Commoning: Pesquisa Artística e a Utopia de Todos os Dias.

cascoA exposição no Instituto de Arte Casco

O título “Trabalhando para o Comum” aos olhos do time do Casco significa praticar e entender o comum como mais do que um conjunto (pool) de recursos a serem geridos e sim como um sistema de valores, princípio de governança e um caminho para relações contra-hegemônicas. Para isso, reivindicam os pensamentos e a ética feminista de Silvia Federici, Bell Hooks e Nina Simone, compondo uma personagem de nome de Nina Bell Federici, uma espécie de norte, mas também de símbolo, presença e exercício de imaginação radical.

A exposição ofereceu uma espécie de caixa de ferramentas conceituais para o comum a partir e pela arte, colocando em prática os pontos essenciais na reestruturação da organização: Ação (propostas experimentais para mudança social com artistas), Corpo (forças organizacionais invisíveis), e Kirakira (espaço para imaginação radical). Estes três aspectos substituem, na proposição da organização, o vocabulário tradicional de organizações artísticas como exposição, educação, publicação, etc. A tríade foi transformada em obra de arte pelo artista Fernando Garcia-Dory e estava também na exposição.

A exposição era dividida em vários ambientes, formatos e infraestruturas ao longo da casa de dois andares. Espalhadas pelo caminho, nos corredores e nas escadas, uma série de aspas retiradas de textos sobre o comum inspirava os participantes. Foram muitas as possibilidades para compreender a experiência proposta, composta por detalhes e vários projetos desenvolvidos ou em desenvolvimento, divididos entre objetos, filmes, instalações e uma área chamada de Gabinetes de Curiosidades para Ação (GCA) que trazia, por exemplo, pôsteres em inglês e espanhol da Convenção para o Uso do Espaço. Tal convenção autodenomina-se primeiro instrumento legal construído colaborativamente e que versa sobre o uso e o valor de moradia e espaços de trabalho contra a especulação financeira e imóveis abandonados.  A convenção pode ser acessada aqui.

O gabinete de curiosidades também era composto pela documentação dos eventos e a máquina de loteria do projeto Parasite Lottery: um projeto piloto de um sistema de loteria para financiamento de organizações de arte na Holanda. Uma mistura de loteria com o arisan, um sistema cooperativo popular na Indonésia, que facilita a criação de poupança coletiva além de vínculos sociais. Parte do dinheiro vai para a organização de eventos sociais, onde os artistas e produtores culturais compartilham saberes e reflexões sobre política cultural e outros debates correlatos. Saiba mais aqui.

Em seu esforço de reimaginar radicalmente a organização, documentos organizacionais do Casco como atas de reuniões, orçamentos, cronogramas, listas de tarefas tornaram-se obras de arte. Em uma das salas, as artistas Maja Bekan e Gunndis Yr Finnbogadóttir selecionaram parte destes conteúdos para compor sua pesquisa sobre produtividade, temporalidade, amizade e maneiras de se trabalhar conjuntamente. As conversas foram então transformadas em uma espécie de colagem de textos e diagramas em painéis grandes que podiam ser movidos pelos visitantes.

Na sala ao lado, outra instalação inspirava-se no conceito de ecossistema utilizado tanto pelo Casco quanto pela rede Arts Collaboratory: uma mesa com papéis que podiam ser retirados e recompostos traziam informações, notas, planilhas excel, orçamentos, salários e outros tópicos. Baseada nas três formas de atividades que Casco está usando, a artista Riet Wijnen propôs diferentes categorias para os textos: teóricos (entendendo os Comuns), estruturantes (organizacional, financiamento, etc) e práticos (dia a dia).

O que vi? A junção da liberdade e radicalidade imaginativa com a concepção estética levou o Casco a um lugar de experimentação organizacional que ao mesmo tempo abre perguntas e tenta respondê-las por meio da teoria e da prática, principalmente a teoria anticolonialista e feminista, a partir de parcerias e colaborações dentro e fora da Europa. Pensei que se Massimo de Angelis diz que não há Comuns sem Comunhar (“there is no commons without commoning”), com certeza não há Comum sem Arte, e vice-versa.

 

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