Avança a proposta de anular atos de Temer

Lula e Ciro começam a defender – ainda que tímidos – a revisão, pelo povo, dos atos do governo e Congresso ilegítimos. Iniciativa pode ser central para mudar o cenário político
Por Antonio Martins
Debatida em abril, num seminário da Plataforma pela Reforma Política, e difundida desde então por Outras Palavras, a proposta de submeter a referendo popular as principais medidas do governo Temer teve um impulso importante, nas últimas semanas. No final de agosto, foi defendida por Lula, numa entrevista a rádios comunitárias de Pernambuco. Hoje (26/9), foi a vez de Ciro Gomes, mencionar a revogação. Falando na sede do Twitter, ele respondeu a internautas que o questionaram: estas medidas, disse, “têm a ferida da ilegitimidade” e “portanto, serão todas substituídas”.
Dois fatores principais dão alento à ideia. O primeiro tem a ver com a necessidade de conquistar o apoio da sociedade, e se possível as ruas, num cenário de enorme instabilidade. O ambiente está carregado de frustração e raiva. Mesmo os que defenderam o impeachment percebem que seus direitos estão sendo roídos por um governo e uma casta política corruptos, aliada ao grande poder econômico. Esta revolta precisa e pode ser convertida em ação transformadora – por exemplo, reivindicando a democracia direta dos plebiscitos. Do contrário, cria-se um enorme vácuo político, favorável ao ressentimento, à antipolítica, aos Bolsonaros
O segundo fator relaciona-se com o pós-Temer. Vai se espalhando a consciência de que os golpistas estão metendo o país numa camisa de forças. Um novo governo nada poderá fazer de relevante, se prevalecerem as contrarreformas impostas a toque de caixa, de costas para a sociedade. Os gastos sociais estarão congelados. O Pré-Sal, entregue às petroleiras estrangeiras. A demarcação das terras indígenas e quilombolas, bloqueada. Os sindicatos e a própria Justiça do Trabalho, sem ação. Nestas condições um governante, mesmo de esquerda, será pouco mais que um fantoche, administrador impotente de um Estado amarrado pelos bancos, pelas grandes empresas, pelo agronegócio e pelos fundamentalistas.
Mas há um porém nas declarações de Lula e Ciro. Elas podem reduzir-se a mera retórica, se não se converterem em mobilização social. O presidente sozinho não tem o poder de revogar leis, muito menos emendas constitucionais. Uma vez eleito o Congresso – que em condições normais serão tão conservador quanto o atual ou mais – o ocupante do Palácio do Planalto nada poderá fazer. Dirá que não há correlação de forças para a revogação. E ela terá sido, então, apenas mais uma promessa vã, para conquistar votos na campanha eleitoral.
Para que tenha sentido, a proposta de referendos revogatórios precisa começar a ser, desde já, um divisor de campos no debate nacional, uma grande ferramenta de renovação. Ela abre caminho para denunciar a maioria conservadora do Congresso e escancarar seus laços com o golpe e as empresas corruptoras. Ela permite argumentar que é preciso eleger, em 2018, quem estiver disposto a devolver ao povo a decisão sobre os grandes temas nacionais. A revogação pode transformar-se num tema unificador, desafiando o paroquialismo despolitizante e evitando que os deputados e senadores sejam eleitos com base na oferta de pequenas vantagens aos eleitores.
A bandeira da revogação tem também um importantíssimo papel didático de base. Ela convida a furar o bloqueio da mídia e debater, com a sociedade, o sentido das principais medidas do governo Temer. O que é a Emenda Constitucional 95, que congela os investimentos em Educação, Saúde, Saneamento e Habitação, enquanto mantém o pagamento de juros aos rentistas. O que são as terras dos povos originários e por que o agronegócio querem invadi-las. O que representa o Pré-Sal? Por que é um crime entregá-lo? Que destinos dar a ele? Qual o sentido da terceirização e do ataque aos direitos trabalhistas, num mundo em que os assalariados já estão sob ameaça do desemprego tecnológico? Por que defender a Previdência Pública?
Tudo isso sugere uma nova democracia, muito mais direta e participativa. Por isso, a proposta dos referendos revogatórios combina mais com as mobilizações autônomas da sociedade do que com os partidos políticos. O Brasil tem experiência nesse tipo de ação. Em setembro 2002, um grande plebiscito informal, conduzido por uma vasta coalizão de movimentos sociais, capilarizou o debate sobre a ALCA, que o governo FHC e a velha mídia buscavam evitar. Foram cerca de dez milhões de votos. Mas – ainda mais importante – foram milhares de assembleias, debates, rodas de conversa, visitas de casa em casa para convocar a população a participar, senti-la, escutá-la, dialogar com ela.
É algo que a esquerda abandonou, ao chegar ao governo e se institucionalizar. Paradoxalmente, a agenda de contrarreformas, o ataque aos direitos da maioria promovidos pelo golpe, oferecem a oportunidade rara de voltar a fazê-lo. Os primeiros acenos de Lula e Ciro são muito bem-vindos – e sinalizam a força da proposta. Mas os referendos revogatórios terão de ser construídos a partir de baixo – e de agora.

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