A resistência quilombola insinua-se na culinária

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Chefes e organizadores do evento com Maurício Pupo, do Quilombo André Lopes (terceiro à esq.)

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Encontro gastronômico entre comunidades e chefes “slow food” lança o livro “Quilombo na Cozinha”  e amplia luta em defesa dos territórios ameaçados por Temer

Por Inês Castilho

Frango caipira com mamão verde. Farofa de taioba com ora-pro-nobis. Carne de jaca verde. Farofa de ostras. Suco de pupunha. Café com garapa. Essas e outras iguarias gastronômicas quilombolas tradicionais da região do Vale do Ribeira integram o livro Quilombo na Cozinha, lançado domingo (27.08) num almoço com a presença de quilombolas e outras 120 pessoas, em São Paulo. Estavam representadas cinco comunidades quilombolas do Vale do Ribeira: quilombos André Lopes, Ivaporunduva, Sapatu, Mandira e São Pedro.

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“O evento foi um manifesto político de um coletivo formado por ativistas, artistas e chefes de cozinha, em desagravo aos violentos ataques sofridos por muitas comunidades tradicionais no país, não apenas as quilombolas, além de fazer o lançamento deste livro em São Paulo no Espaço Zym, restaurante da chefe Claudia Mattos, que assina o projeto como consultora”, explica o historiador Ederon Marques, da agência de turismo comunitário Araribá, que promove práticas socioculturais sustentáveis na Região do Vale do Ribeira desde 1996. A intenção, com o livro, é assegurar condições mínimas para a guarda e a transmissão destes conhecimentos a outras regiões, culturas e gerações futuras.

“O livro de receitas é bom pra restaurar a nossa cultura e ajudar a desenvolver várias receitas da nossa comunidade”, diz Mauricio Pupo, liderança do Quilombo André Lopes, no município de Eldorado. “Como a gente está pretendendo trabalhar com turismo esse livro vai nos ajudar, porque hoje temos várias moças e rapazes que talvez não consigam cozinhar como nossos antepassados.” Uma das poucas depositárias vivas de conhecimentos sobre as práticas gastronômicas tradicionais locais, a líder comunitária Luzelda Pereira de Morais foi uma figura fundamental para a realização do livro.

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Alguns dos pratos servidos no almoço

As práticas culinárias quilombolas respondem a uma das maiores necessidades humanas contemporâneas, frontalmente contrária aos apelos mercadológicos e midiáticos da alimentação moderna: a da alimentação diversa, saudável, de produção ecologicamente correta e que mantém a biodiversidade.

“É um jeito gostoso de fazer política”, diz a chef Claudia Mattos, líder da Aliança de cozinheiros Slow Food. “Me apaixonei pelas comunidades quilombolas do Ribeira desde o meu primeiro encontro, há mais de 7 anos. Foi em uma feira de troca de sementes e mudas. Ali vivi a importância do Paiol – como eles batizaram seu banco de sementes tradicionais – que reúne uma grande etnovariedade de arroz, milho, feijão e mandioca, entre outros, para a conservação da biodiversidade.” Ela considera os quilombolas “um patrimônio gastronômico, guardiães da biodiversidade local e representantes da diversidade sociocultural do Brasil”.

O evento foi mais uma iniciativa em defesa dos territórios tradicionais quilombolas, no caldeirão da campanha “Nenhum Quilombo a Menos” e outras contra as ameaças do governo Temer a indígenas e quilombolas. Um encontro entre pessoas interessadas em pensar projetos para o país e celebrar o alimento, com a participação de cozinheiros engajados. Dois documentários do cineasta Sergio Roizenblit foram apresentados no evento: Terra Paulista – Na beira do Ribeira, que integra uma série produzida pela ONG Cenpec (Centro de Estudos e Pesquisas em Educação e Ação Comunitária) e Quilombos, episódio da série Habitar-Habitat, da TV Sesc. Entre as instituições apoiadoras estão o ISA – Instituto Socioambiental e o Instituto Chão.

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Coleta e teste de receitas tradicionais quilombolas realizado em 2016 na comunidade André Lopes

Terras comuns

Quilombos são comunidades negras rurais que agrupam descendentes de escravos, vivendo de cultura de subsistência e onde as manifestações culturais têm forte vínculo com o passado – segundo definição da Associação Brasileira de Antropologia. Entre os séculos 16 e 19, os escravos fugidos das fazendas – e de outras opressões, como o recrutamento para a guerra – abrigavam-se em áreas rurais distantes da cidade para se defender da escravidão e resgatar sua cultura e laços de família. Nos quilombos, o uso da terra e dos recursos naturais é comum, como nos territórios indígenas. O direito à propriedade de seus territórios, hoje ameaçado, foi garantido pela Constituição de 1988. Levantamento da Fundação Cultural Palmares, do Ministério da Cultura, mapeou 3.524 dessas comunidades. De acordo com outras fontes, contudo, esse número pode chegar a cinco mil.

A região do Vale do Ribeira tem 86 comunidades remanescentes de quilombos.  Localizada ao sul do estado de São Paulo e norte do Paraná, a região abarca 31 municípios (22 paulistas e 9 paranaenses) e, embora de grande riqueza sociocultural e ecológica, é uma das mais pobres do estado de São Paulo. Nela vivem, além dos quilombolas, comunidades caiçaras e de índios Guarani, pescadores tradicionais e pequenos produtores rurais. É a maior área contínua de remanescentes de Mata Atlântica do país, onde corre o rio Ribeira do Iguape e encontram-se restingas e manguezais.

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A chef Claudia Mattos (terceira à esq.) durante trabalho de pesquisa e coleta de receitas no Quilombo André Lopes, em 2016

A ocupação de Quilombo André Lopes se deu a partir da expansão territorial de grupos negros estabelecidos nos arredores de Ivaporunduva, São Pedro (antiga Lavrinha) e Nhunguara e de deserções do Exército por ocasião da Guerra do Paraguai. Os primeiros registros do quilombo datam de 1830. A gruta de Tapagem, hoje conhecida como Caverna do Diabo, teria servido de esconderijo para negros durante a guerra.

Cozinha engajada

O livro Quilombo na Cozinha – Receitas tradicionais quilombolas pode ser comprado em Outros Livros, de Outras Palavras, por 25 reais – valor integralmente repassado aos quilombolas.

Integraram a cozinha do almoço quilombola: Ana Luiza Trajano, chef e pesquisadora da Cozinha Brasileira, Instituto Brasil a Gosto; Bel Coelho, chef de cozinha, restaurante Clandestino; Ellen Gallego, chef e produtora agroflorestal, Quintal da Leontina, membro da Aliança de cozinheiros Slow Food; Eugênio Basile, produtor e diretor da Mbee Mel de Terroir; Eudes Assis, chef do restaurante Taioba; Fábio Vieira, chef proprietário do restaurante Micaela; Guga Rocha, chef executivo, Tapioteca (SP) e The Gusta (RJ); Heloisa Bacelar, chef proprietária do armazém e restaurante Lá da Venda; chef Iza Tavares; Leila D, artista da culinária, idealizadora do Festival de Gastronomia Orgânica da Terra ao Prato; Marcelo Bastos, chefe do restaurante Jiquitaia; Maria Conceição Oliveira, chef e pesquisadora da Cozinha Afro Brasileira, membro da Aliança de cozinheiros Slow Food; Mari del Mar, cozinheira, Com Alma; Tatiana Peebles, produtora, Café Yaguara Ecológico; Wlisses Reis, chef, restaurante Clandestino.

O menu e equipe de cozinheiros estiveram a cargo de Bel Coelho. A coordenação e organização do evento foram de Ederon Marques e Marcelo Semiatzh. Apoiaram o evento Ieltxu Ortueta, designer gráfico, Artefactos Bascos; e Zernesto Pessoa, ator e produtor.

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Um comentario para "A resistência quilombola insinua-se na culinária"

  1. Domenica disse:

    Boa tarde!
    Onde consigo encontrar o livro? Já pesquisei em algumas livrarias grandes pela internet e não encontrei.

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