Nordeste: as lições da longa seca

obra-são-francisco-2

Sertanejo caminha pela vala incabada do canal da Transposição do S. Francisco. Grandes obras converteram-se em estorvo

.

Mudança climática parece ter chegado, mas falta de chuvas já não traz tragédia social: conceito de “convivência com o Semiárido” mostrou sua potência. Problema é o mito da “transposição”

Por Roberto Malvezzi (Gogó)

Nesses quase quarenta anos de sertão é a primeira vez que ficou um ano sem cair chuva no telhado de casa. A última chuva foi em Janeiro de 2016. No entorno da cidade, Juazeiro da Bahia, já choveu.

O problema básico não é que fica sem chover, mas chover muito menos. Os cientistas estão perplexos, porque a cada ano se fala que teremos chuvas normais, até acima da média, mas elas não vêm. Atribui-se sempre a razão ao fenômeno El Niño, que aquece as águas do Pacífico, elas caem abundantes no sul e sudeste do Brasil, mas não chegam ao coração do Semiárido.

Nós, que acompanhamos as mudanças climáticas, suspeitamos que elas já chegaram, para ficar, e a prevista diminuição das chuvas de 20 a 40% no Semiárido já está acontecendo.

Numa situação climática como essa, vinte anos atrás, o Nordeste já seria uma tragédia social e humanitária de proporções gigantescas, com centenas de milhares de mortos, sem falar nos migrantes e tantas outras mazelas sociais e humanitárias.

Entretanto, numa reportagem feita pela Globo no Jornal Hoje, a única tragédia social que acharam foi a mortandade de 20% do rebanho bovino do Pernambuco. A matéria teve que mostrar, de forma constrangida, o gado gordo de um criador, só que sustentado à base de ração comprada. Mas ele pode comprar a ração. Além do mais, criar gado de raça nesse sertão é considerada atividade de risco, devido ao clima.

O que mudou essa realidade foi o intenso trabalho da Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA), com seu paradigma de convivência com o Semiárido, captando a água de chuva de forma distribuída, com uma agroecologia adaptada ao ambiente, com a criação de pequenos animais mais resistentes ao clima, com a agroindústria de produtos naturais e com as políticas sociais dos últimos governos. O governo atual voltou à lógica do combate à seca.

É uma vergonha para Pernambuco sofrer com a seca. O Estado é banhado em quase 400 km pelo rio São Francisco. Onde foram feitas as adutoras transversais que abastecem Pernambuco, não há problema para humanos e animais. Falo da adutora que sai de Cabrobó e vai cortando o Estado até acima de Ouricuri. E da outra, que sai de Floresta e vai na direção de Serra Talhada e Flores. Essa deveria ter chegado à Paraíba faz tempos. Porém, a insistência na grande obra da Transposição bloqueou as adutoras simples. Por isso, a que deveria abastecer o agreste pernambucano está até hoje esperando pelo Eixo Leste da transposição. Uma perda para o povo e para os animais.

Quanto à Transposição, agora já se fala na sua gestão privada. Sabíamos dessa intenção desde o começo. Resgatei um texto que fiz nem sei mais em que ano, mas que estava arquivado digitalmente no site de João Suassuna. Cito um trecho só para lembrar o que tanto denunciamos:

É preciso observar que a Transposição, alicerçada na filosofia que a sustenta, insere-se na lógica mercantil da água, hoje globalizada. É o que chamamos de hidronegócio. Por isso, repetimos que a Transposição é ‘a última obra da indústria da seca e a primeira do hidronegócio’. Agora a própria CHESF já fala em criar ‘leilões de água’, isto é, já não se visa sequer a água para irrigar e criar camarão, mas para vendê-la como uma mercadoria qualquer, como se no Brasil alguém fosse proprietário de nossas águas”.

A única novidade é que esse mercado de águas terá gestão privada. Portanto, não caberá mais à CHESF essa tarefa.

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *