O surrado argumento do "terror"

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Justiça Federal renova, por um mês, prisão arbitrária de supostos simpatizantes do ISIS. Nada de novo: governos autoritários do continente — como o de Alberto Fujimori — brandiram “ameaça terrorista” para conservar poder

Por João Vitor Cardoso e Konstantin Gerber

A duas semanas das Olimpíadas, dez pessoas, jovens de diferentes Estados brasileiros, foram presas acusadas de fazer parte de uma célula do Estado Islâmico e planejamento de atos terroristas nas Olimpíadas. Ignorou-se publicamente a arbitrariedade e a antijuridicidade destas prisões bem como a presunção de inocência, enfim, toda a ignomínia do butim. Os fatos já estavam consumados e não houve tempo para a opinião pública formular qualquer juízo sobre esta empreitada ultraje da agência de (pseudo-) inteligência brasileira.

O ministro da Justiça pronunciou-se no sentido de que as prisões foram significativas por serem as primeiras aplicadas conforme a Lei Antiterror, de 2016. O Supremo silenciou. No Estado de Exceção, o tribunal constitucional não tem mais função alguma, os problemas colocados já não são de sua competência. A versão oficial é de que tais prisões foram realizadas para efeito dissuasório. O governo Temer insiste em ações militares e diplomáticas completamente atabalhoadas que, ao invés de afastar o risco de atentados, só o fortalece. Cresce um discurso jurídico-político que explicita a configuração legal do terror de Estado, como “medida de segurança” cujo substrato é geralmente formado por policiais recrutados nos estratos pauperizados e “que dispõe seu corpo para garantir a propriedade que não é sua1”. Enquanto isso, todos são vistos e monitorados como “terroristas em potencial”. Afinal, não seria conveniente para um governo ilegítimo ter um inimigo tão amedrontador?

No Chile, esta discussão subsiste quando se trata da luta travada pelo povo indígena Mapuche. Entre 2000 e 2013, o Ministério Público Chileno formalizou um total de 19 acusações sob a Lei Antiterrorista Chilena (Ley 18.314), das quais 12 se relacionam a reivindicações de terras ancestrais de grupos mapuche. A este respeito, vários organismos internacionais têm manifestado sua preocupação pela aplicação da Lei Antiterrorista em relação a delitos cometidos no contexto de protestos ou constataram uma aplicação “desproporcional” desta lei aos Mapuche.

Conforme o Caso Norín Catrimán y otros vs. Chile, a Corte Interamericana ordenou ao Estado Chileno “[a]decuar la legislación antiterrorista consagrada en la Ley 18.314, de manera que sea compatible con el principio de legalidad establecido en el artículo 9 de la Convención Americana”, e indicou que a reforma de 2010 à Lei Antiterrorista não implicou uma modificação substancial que a compatibilizou com a Convenção, já que se tratou apenas de remanejamento de vocabulário, em que se conservou a lógica anterior a respeito da hipótese da finalidade terrorista. Ademais, há algumas semanas, o cidadão basco Iban Gartzía foi detido pela Polícia de Investigações chilena. Ele tinha histórico de vinculação a movimentos de esquerda e anarquistas bascos, sendo esse o motivo formal de sua expulsão. Estas articulações surpreendentes de movimentos sociais entram em estágio de compressão pelas forças repressoras do Estado. Estas, à sua vez, definem como conduta criminosa certas atitudes admiráveis. É este o risco da instrumentalização política das acusações de terrorismo.

Em diversos casos, sobretudo, aqueles envolvendo as leis do período Fujimori no Peru, a Corte Interamericana de Direitos Humanos entendeu que os jueces sin rostro, os tipos penais de terrorismo muito abertos e a falta de respeito a garantias penais mínimas no combate ao terrorismo violam a Convenção Americana2. O terrorismo de Estado na América Latina está associado aos desparecimentos forçados no período das ditaduras de nosso continente. Caberia a nós a expressão de Pierre-Joseph Proudhon, em Carta ao Ministro da Justiça da França, anos após a Comuna: “Na nossa pátria sempre existiu exceções a todo tipo de direito”. E assim caminhamos: agora, vem o overlap da guerra global contra esta “violência”. O mercado de armas agradece às leis anti-terror em vigor na Americana Latina. Esse regime de violência política e simbólica não pode confluir para nada mais que o reconhecimento do direito da força, da segurança policial. Não é difícil identificarmos o inimigo atual da nossa sociedade.

João Victor Cardoso. Formado em Direito pela PUC-SP, onde integra o Grupo de Pesquisa em Direitos Fundamentais. Mestrando no Programa Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades na FFLCH-USP.

Konstantin Gerber. Advogado Consultor em São Paulo, mestre e doutorando em filosofia do direito pela PUC-SP, onde integra o Grupo de Pesquisa em Direitos Fundamentais. Professor convidado do curso de especialização em Direito Constitucional da PUC-SP.

1 PASSETTI, Edson. As liberdades e o projeto de lei do terrorismo. Disponível em Jornal Zero Hora, Porto Alegre, 22/02/2014.

2CARRASCO, Salvador Herencia. El tratamento del terrorismo en la organización de los estados americanos y en el sistema interamericano de derechos humanos. In: AMBOS, Kai & MALARINO, Ezequiel & STEINER, Christian. Terrorismo y derecho penal. Edpal, Konrad Adenauer, Bogotá: 2015, p. 61

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Um comentario para "O surrado argumento do "terror""

  1. Duarte Rosa Filho disse:

    Preparam o ambiente para políticas de choque:
    A Doutrina do Choque (2009): documentário dirigido por M. Whitercross e M. Winterbottom, roteiro de Naomi Klein.Naomi Klein põe um fim ao mito de que o mercado livre global triunfou democraticamente. Expondo o modo de pensar, o rasto do dinheiro e os fios de marioneta por detrás das crises e guerras mundiais das últimas quatro décadas, “A Doutrina do Choque” é a história absorvente de como as políticas de “mercado livre” da América têm vindo a dominar o mundo – através da exploração de povos e países em choque devido a inúmeros desastres. Na conjuntura mais caótica da guerra civil do Iraque, é apresentada uma nova lei que permitiria à Shell e à BP reclamar para si as vastas reservas petrolíferas do país… Imediatamente a seguir ao 11 de Setembro, a administração Bush concessiona, sem alarido, a gestão da “Guerra contra o Terror” à Halliburton e à Blackwater… Depois de um tsunami varrer as costas do sudeste asiático, as praias intocadas são leiloadas ao desbarato a resorts turísticos… Os residentes de Nova Orleães, espalhados pelo furacão Katrina, descobrem que as suas habitações sociais, os seus hospitais e as suas escolas jamais serão reabertas… Estes acontecimentos são exemplos da “doutrina de choque”: o aproveitamento da desorientação pública no seguimento de enormes choques colectivos – guerras, ataques terroristas ou desastres naturais – para ganhar controlo impondo uma terapia de choque económica. Por vezes, quando os dois primeiros choques não são bem sucedidos em eliminar a resistência, é empregue um terceiro choque: o eléctrodo na cela da prisão ou a arma Taser nas ruas. Baseado em investigações históricas inovadoras e em quatro anos de relatos no terreno em zonas de desastre, “A Doutrina do Choque” mostra de forma vívida que o capitalismo de desastre – a rápida reorganização corporativa de sociedades que tentam recuperar do choque – não começou com o 11 de Setembro de 2001. O livro traça um percurso das suas origens que nos leva há cinquenta anos atrás, à Universidade de Chicago sob o domínio de Milton Friedman, que produziu muitos dos principais pensadores neoconservadores e neoliberais cuja influência, nos nossos dias, ainda é profunda em Washington. São estabelecidas novas e surpreendentes ligações entre a política económica, a guerra de “choque e pavor” e as experiências secretas financiadas pela CIA em electrochoques e privação sensorial na década de 1950, pesquisa essa que ajudou a escrever os manuais de tortura usados hoje na Baía de Guantanamo.
    Livro disponível em https://osirredentosblog.files.wordpress.com/2015/12/a-doutrina-do-choque-naomi-klein.pdf
    Filme disponível em https://www.youtube.com/watch?v=KRyJDTdBmCI

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