No Equador, o petróleo contra os índios

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Governo Rafael Correa anuncia nova rodada de licitação de blocos petroleiros, contrariando a opinião de lideranças dos povos originários

Por Luísa de Castro e Marina Ghirotto

No momento em que o valor do barril de petróleo atinge cifras inferiores a US$ 30, o governo equatoriano assinou um contrato com o consórcio chinês Andes Petroleum para exploração de dois blocos de petróleo na província amazônica de Pastaza. Os blocos de número 79 e 83 se sobrepõem à quase totalidade do território indígena Sápara, cultura declarada patrimônio oral e imaterial da humanidade pela Unesco. Além disso, coloca em risco outros dois grupos que se encontram em isolamento voluntário, os Tagaeri e os Taromenane (da nacionalidade Waorani), situados na “Zona Intangível” do Parque Nacional Yasuní, um dos locais mais biodiversos do mundo. Na rota da exploração está também o território do povo de Sarayaku, da nacionalidade Kichwa, internacionalmente conhecido pelo cabo de guerra travado há vários anos com governos anteriores em oposição à instalação da indústria petroleira em seu território.

O governo do presidente Rafael Correa anunciou ainda, para o decorrer de 2016, uma nova rodada de licitação de blocos petroleiros em territórios indígenas, contrariando a opinião de lideranças de diversos povos, as quais procuram pressionar o governo nacional através de marchas, declarações públicas e da participação em fóruns ambientais internacionais, como foi o caso da COP-21, realizada em Paris, em dezembro de 2015.

Eduardo Pichilingue, ex-coordenador do Plano de Proteção aos Povos Indígenas em Isolamento, denuncia que o governo equatoriano alterou a localização dos povos em isolamento voluntário, mapeada entre 2009 e 2010, com a finalidade de permitir a exploração petroleira, a partir de 2013, da Zona ITT (Ishpingo, Tambococha y Tiputini), bloco 43 situado no Yasuní. Segundo Pichilingue, com a ampliação da fronteira petroleira, além do bloco ITT “volta-se a interferir na Zona Intangível do Yasuní, delimitada em defesa dos povos em isolamento voluntário, e que deveria, por lei, ser isenta de atividades extrativistas”. O ex-funcionário relata uma apreensão constante por conflitos violentos envolvendo os povos isolados, cada vez mais pressionados pela expansão da atividade petroleira.

As manobras por parte do governo Correa em torno à nova rodada de licitações teriam uma forte motivação. Dos 8,1 milhões de hectares que correspondem à região amazônica, o Equador planeja leiloar 3 milhões para empresas petroleiras chinesas. Atualmente, o país possui uma dívida de mais de US$ 7 bilhões com a China, cerca de 10% do seu PIB, segundo Jonathan Kaiman, do The Guardian Report (ver aqui). O pagamento estaria vinculado ao progressivo fornecimento de petróleo, a projetos de mineração, construção de hidrelétricas e de uma refinaria no país. Para o líder Sápara Manari Ushigua, as negociações entre os dois países significam que o “Equador está hipotecando territórios indígenas para saldar as dívidas com os chineses”.

O endividamento com a China e a iminente ampliação da fronteira petroleira são apenas dois dos alvos de controvérsias enfrentadas pelo governo Correa e por seu partido (Alianza País), majoritário na Assembleia Nacional. De um lado, em 2008, Correa apoiou a elaboração de uma nova Constituição, aceitando a concepção de Estado plurinacional, do Bem Viver (ou Sumak Kawsay, em kichwa) e dos Direitos da Natureza – inovações jurídicas inspiradas em concepções históricas do movimento indígena equatoriano. O “Plano Nacional do Bem Viver” (PNBV) foi criado como roteiro de ação do governo Correa, tendo como um dos principais objetivos a superação da dependência econômica no extrativismo em ampla escala.

Contudo, na prática, uma série de opções políticas coloca em xeque o “Socialismo do Século XXI” ou “Socialismo do Bem Viver”. Após uma década de “Revolución Ciudadana” – como se intitulam as transformações promovidas pelo governo Correa – o país não apenas permaneceu dependente do petróleo e outros recursos naturais não renováveis, como tende a ampliar o peso do setor primário na economia. A justificativa é a de que uma política extrativista desempenhada com tecnologia de ponta e valorizando a soberania nacional forneceria condições necessárias para o fortalecimento do Estado, redução da pobreza e aumento dos gastos em áreas de interesse social, como saúde e educação, os quais seriam finalmente revertidos à região de onde provêm os recursos petroleiros, a Amazônia.

Várias outras empresas, incluindo a ARCO, Burlington Resources e Conoco Phillips, já tiveram suas atividades encerradas na Amazônia sul-oriental, em momentos anteriores, em razão da oposição comunitária indígena. O povo indígena de Sarayaku é um dos exemplos mais conhecidos. Em 2002, ganharam uma sentença histórica contra o governo equatoriano na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). O Equador foi sentenciado por autorizar a entrada da petroleira argentina Compañía General de Combustibles (CGC) em território Sarayaku sem o consentimento da comunidade. Essa sentença reafirma o direito das comunidades indígena a uma consulta de fato prévia ao processo de licenciamento e exploração petroleira.

Opositores à margem da “Revolução Cidadã”

Os aparatos do governo têm sido colocados em ação, numa tentativa de forjar a aceitação da nova rodada de licitações. O resultado: sucessivas divisões internas às organizações indígenas, com favorecimentos propostos aos apoiadores do projeto extrativista governamental. Em informe interno de outubro de 2015 da Secretaría de Hidrocarburos del Ecuador – órgão responsável pela consulta prévia às comunidades indígenas, condição determinada pelo Convênio 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e pela Constituição do país –, funcionários do governo equatoriano alertam para a necessidade de “seguir mantendo o diálogo” com comunidades diversas, a fim de conter a influência das “ONGs ambientalistas” e do povo de Sarayaku, “que promove a oposição à indústria petroleira nessa região do país”. Esse é um dos indicativos de esforços para driblar setores contrários à ampliação da fronteira petroleira.

Ushigua e outros líderes indígenas se recusam a enfrentar os impactos sociais e ambientais decorrentes de atividades extrativistas e têm reagido a um governo determinado a levar a cabo seu projeto de desenvolvimento. Em uma carta aberta ao ministro coordenador de Setores Estratégicos, ao ministro de Hidrocarbonetos e ao presidente executivo da Andes Petroleum LTD, as nacionalidades Sápara, Achuar e Shiwiar, bem como o povo kichwa de Sarayaku, a Confederação das Nacionalidades Indígenas da Amazônia (Confeniae) e a Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie), expressam sua oposição à licitação dos blocos petroleiros. “Ratificamos nossa posição de defesa do território perante as atividades petroleiras. Denunciamos o incumprimento por parte do Estado equatoriano ao direito à consulta livre, prévia e informada”, afirmam no documento.

“Nós estamos defendendo e protegendo nosso território, sua biodiversidade, rios, bosques, plantas, flora e fauna. Além disso, nossos direitos não estão sendo respeitados, apesar de estarem garantidos pela Constituição equatoriana e pelo direito internacional”, declarou Ushigua, na parte externa da Secretaria de Hidrocarbonetos em Quito, enquanto acontecia a reunião entre representes do governo e das empresas chinesas para selar o controverso acordo. “Se destroem a selva, destroem nossa cultura”, afirmou Manuela Nahura, indígena da nacionalidade Andoa e moradora no território Sápara. “O governo diz que somos pobres, mas isso é mentira. Nós somos aqueles que possuem riquezas. Nós protegemos e cuidamos da selva há milênios, de forma natural e para o Bem Viver. Queremos o petróleo embaixo da terra para o Sumak Kawsay das nacionalidades”, acrescentou.

“O governo é o responsável direto por qualquer coisa que aconteça em nossas comunidades”, disse Jorge Herrera, presidente da Conaie, em resposta ao acordo assinado. “O projeto é ilegítimo e ilegal. Vai contra nossas comunidades e contra a natureza. Esse é um governo de dupla moral”, denunciou. Além da Constituição, o Equador é também signatário de tratados internacionais – como a Convenção 169 da OIT e a Declaração dos Povos Indígenas das Nações Unidas, de 2007 – que garantem o respeito aos direitos indígenas, inclusive o de consulta livre, prévia e informada sobre projetos que afetem a vida em seus territórios.

Marina Ghirotto é formada em relações internacionais e mestre em ciências sociais pela PUC-SP.

Luísa de Castro é jornalista, mestre em ciência política e doutoranda em sociologia pela UnB.

 

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