Uma alternativa ao “Ajuste fiscal”

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No momento em que conservadores e governo falam em cortar serviços públicos, surge saída oposta: tributar riqueza financeira, eliminando privilégios insensatos

Por Inês Castilho

Diante de um ano complexo e de incerteza sobre o futuro da vida, no Brasil e no planeta, a Campanha pela taxação das transações financeiras (TTF Brasil), rede de movimentos sociais nacionais articulados a rede internacional, reafirma a necessidade de taxar o capital improdutivo para financiar o ambiente e o desenvolvimento.

Causador de desigualdade pelo crescimento superior ao do capital produtivo, o sistema financeiro acumula os recursos necessários para financiar o acordo do Clima, a ser firmado em Paris no final de 2015, e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) em discussão na ONU, também a partir de 2015. Internamente, a Campanha encaminha projeto de lei sobre mudança no Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), a TTF brasileira, de modo a possibilitar que parcela dele seja dirigida a um Fundo para projetos sociais e ambientais inovadores.

Pela quarta vez desde que foi criada no Brasil, em 2012, a Campanha reuniu-se para análise da conjuntura, em sua IV Roda de Diálogo Estratégico sobre Democracia Econômica, mês passado em Brasília. O debate foi provocado pelos economistas Ladislau Dowbor (professor da PUC-SP), Marco Antonio Cintra (pesquisador do IPEA), Claudio Fernandes (da ONG Gestos) e o jornalista Antonio Martins (site Outras Palavras). Presentes, a Oxfam, a Abong (Associação Brasileira de Ongs), a área internacional da CUT e a Federação de Economia Solidária,entre outros.

As exposições, não muito otimistas, levaram Ladislau Dowbora a chamar, com o costumeiro bom humor, de Coffee Party a direita desfraldada nas ruas. E definiram o caminho a ser perseguido pela alternativa Robin Hood – personagem-simbolo da Campanha.

A persistente crise internacional e o acirramento da concorrência de todas as ordens, com a crise mundial batendo forte no Brasil, impõem um modelo econômico alternativo à austeridade, comprovadamente recessiva. A taxação das transações financeiras e a revisão do IOF, assim como tributar as grandes fortunas e fechar o ralo dos paraísos fiscais integram essa alternativa. Com o benefício da queda das escorchantes taxas de juros e do valor do dólar, que vai às alturas.

Como Marcos Antonio Cintra ressaltou: “Não vamos mais incorporar 30 milhões de pobres na próxima década, se não mudarmos o modelo”. Ele enxerga uma conjuntura internacional sombria. “A crise de 2008 não acabou. O preço do petróleo, do cobre, do aço desabaram. Os sistemas industriais estão sofrendo de superprodução, e há um acirramento da concorrência.” O economista do Ipea vê a aproximação de um confronto entre EUA e China – já em 2014 a produção econômica chinesa foi superior à norte-americana. Lembrou que a Inglaterra e os EUA são absolutamente contrários à TTF em 11 países da União Europeia, já acordada e que deveria vigorar a partir de janeiro de 2014, mas foram postergadas para 2016.

Claudio Fernandes informou sobre as negociações na ONU pelos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), a partir de 2015, quando findam os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) – nem todos atingidos. “Na ‘comunidade internacional’, o modo de financiar o desenvolvimento e o meio ambiente é basicamente a filantropia. Acontece que nos últimos 20 anos saíram muito mais recursos do que entraram, nos países pobres. A sustentabilidade social não foi ampliada – se tenho dou, se não tenho não dou, se não gosto não dou. Queremos com as TTFs instituir um processo sistêmico para financiar o desenvolvimento. O sistema financeiro tem riqueza enorme, talvez maior que a da economia produtiva, e deve colaborar” – disse. “O senso comum é que a economia está mal e precisa voltar a crescer. Mas há recursos, a disputa é outra” – observou Carlos Aguilar, da Oxfam.

Já Antonio Martins ressaltou o caminho alternativo: um ajuste com corte da taxa de juros – exatamente o contrário do que está sendo praticado – e investimento em serviços públicos e obras de infra-estrutura, capazes de assegurar direitos e criar emprego e demanda, pois aumentar os juros torna o real mais forte e agrava a desindustrialização. “Vários setores querem debater o agigantamento do capital financeiro no Brasil, setores descontentes – os órfãos do eleitorado, os movimentos sociais e sindical. Daí a necessidade de reforçar nossa posição de contestação à ditadura financeira e oposição ao ajuste fiscal, e oferecer à sociedade informações sobre isso.” Uma referência são os dados trazidos por Ladislau Dowbor, contrários à ladainha incessantemente martelada na cabeça da população pela mídia empresarial. “A Campanha deve amplificar as informações sobre os caminhos do dinheiro público, sugado por juros cada vez mais altos.”

Trava-se uma batalha ideológica, observou Ladislau, daí a importância de juntar alguns eixos de comunicação da mídia livre e mobilizar a sociedade. “Temos de explicar como o país está sendo sangrado, numa fala propositiva sobre como o dinheiro deve ser usado. Juntar os meios de comunicação alternativos e usar as ferramentas internacionais, como os dados sobre a desigualdade que a Oxfam tem apresentado.”

Em relatório sobre a extrema desigualdade, a instituição revela que há no mundo 85 indivíduos com riqueza correspondente à de 3,5 bilhões de pessoas. E que sete em cada dez pessoas vivem em países onde a desigualdade só cresce. Com base nesse relatório, a Oxfam lançou uma campanha global. “A extrema desigualdade é um tema que mobiliza. O sistema financeiro especulativo, não regulado, está causando mais concentração de riqueza no mundo. No Brasil temos o esgotamento do modelo – aumentar o salário mínimo, transferir renda, isso não avança mais, se não tocar nas questões estruturais: as reformas política, do sistema fiscal regressivo e também a da terra. Uma campanha sobre o IOF ou as TTFs pode ser limitada, se não estiver ligada à desigualdade” – considera Simon, da Oxfam.

Damien Hazard, diretor da Abong e da Vida Brasil, fez lembrar que a desigualdade é negra e indígena, e que a implantação das TTFs pode ser considerada uma política de reparação. Falou sobre a dificuldade de articulação dos movimentos sociais, num momento em que a esquerda está fragilizada e a direita, forte, em todo o mundo. E que é preciso crescer menos e redistribuir mais, ao contrário do que pensam sobre desenvolvimento tanto a esquerda como a direita.

Delso Oliveira Andrade, do Forum Brasileiro da Economia Solidária, falou desde a perspectiva do mundo rural. Alertou sobre a necessidade de se impulsionar o setor produtivo para fazer frente ao ajuste. “Precisamos ter em mente o papel estruturante da agricultura familiar: na alimentação, na saúde, no meio ambiente. Ela é responsável por 75% do alimento que vai para a nossa mesa, utiliza mão de obra, pratica a agroecologia. Mas isso não é pautado, o governo se volta sempre ao agronegócio. E o Forum não tem conseguido estabelecer diálogo com a sociedade, apresentando a Economia Solidária não como mitigação da pobreza, mas como alternativa real”.

O cheiro do ralo

É sobre o ralo por onde é sugado o dinheiro público que o economista Ladislau Dowbor vem se debruçando em seus estudos – as tenebrosas transações cometidas pela sistema de intermediação financeira, que travam o processo econômico. “Estamos sendo depenados, e precisamos entender como”- disse ele, retomando artigo em que aponta os juros escorchantes cobrados nas compras a prazo – média de 72% anuais, chegando a 122%, mais do dobro que à vista, enquanto nos EUA são cerca de 7%. “É uma punção sobre a capacidade de compra. Estão sendo sugados pelo sistema financeiro, via crediário, recursos que poderiam aumentar o emprego e o salário. Não são mais prestadores de serviço, são achacadores.”

Dowbor falou ainda a respeito dos juros aplicados sobre empréstimos de pessoas físicas e jurídicas. O sistema financeiro cobra 238,67% no cartão de crédito, 159,76% no cheque especial e 234,58% na compra de automóveis (em junho de 2014). Dos empréstimos pessoais, 50,23% nos bancos e 134,22% nas financeiras, em média. “Quem compra a prazo imobiliza por 12 meses parte dos seus recursos, trava-se a demanda com o endividamento real das famílias. É muita dívida para pouca compra, e a pouca demanda trava também as empresas – e isso esfria a economia.”

Já os juros para pessoa jurídica têm taxa média de 50,06% ao ano, prosseguiu Dowbor, sendo 24,16% para capital de giro, 34,80% para desconto de duplicatas, e 100,76% para conta garantida – enquanto na Europa, no Canadá, a taxa vai ser de 4, 5%, aqui é de 50% – ressaltou. “É o terceiro travamento por juros exorbitantes. Ninguém consegue criar uma empresa, enfrentar o tempo de entrada no mercado e de equilíbrio das contas pagando este tipo de juros. O investimento privado é diretamente atingido. Prejudica-se assim tanto a demanda como o investimento, os dois motores da economia.”

O quarto elemento é a taxa Selic – diz o professor. Os bancos alocam os recursos em títulos da divida pública, e recebem 25% por esses recursos, enquanto me pagam 8% ao ano. “Esse dinheiro vem dos impostos do Ladislau. O governo toma emprestado dos bancos via títulos da dívida pública por taxa muito mais alta do que aquela que os bancos pagam pra nós.”

Criada em 1996, a Selic oscilou de 25% a 30%, chegando a 47% no governo FHC. Estava em 25% no início do governo Lula, chegando a 7,5% com Dilma. Hoje está em 12,75%, tendendo a aumentar com o ajuste fiscal. “O superávit primário é o dinheiro público que vai ser transferido para os bancos e alguns aplicadores. Esse valor é cerca de 250 bilhões, quase 5% do PIB, de 4,8 trilhões. Vejam-se os lucros exorbitantes dos bancos, que de 2013 para 2014 aumentaram 10% – numa economia que cresceu quase zero.”

Mas o mais revoltante é ver a diferença entre o que os bancos cobram aqui e no exterior. “A taxa real de juros para pessoa física (descontada a inflação) cobrada pelo HSBC no Brasil é de 63,42%, e de 6,60% para a mesma linha de crédito no Reino Unido. No Santander, as cifras correspondentes são 55,74% e 10,81%. Não por acaso, 25 a 30% do lucro mundial do Santander vem do Brasil” – informou Dowbor. Nos empréstimos às pessoas jurídicas – área vital por tratar de fomento a atividades produtivas – a situação é igualmente absurda: a taxa de juros é mais de 4 vezes superior para o brasileiro. “O HSBC, por exemplo, cobra das empresas 40,36% no Brasil e 7,86 no Reino Unido.”

Ladislau Dowbor lembra que isso gera tremenda concentração de recursos nas mãos de muito poucos. São 147 grupos financeiros – 75% dos quais bancos – controlando 40% das empresas no mundo, como relata em outro artigo. O que nos remete aos paraísos fiscais, onde se escondem quantias bilionárias sonegadas aos impostos. “Há 519,5 bilhões de dólares de dinheiro do Brasil em paraísos fiscais, estima o Tax Justice Network. Dinheiro que não fica em praias com palmeiras, mas é administrado por bancos, como o Barclays por exemplo. Já na publicidade eles se apresentam com criancinhas e mães, num clima de ternura. Esta é uma engrenagem que funciona em nível mundial”.

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