O ladrão que existe dentro de nós

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Pequena crônica sobre um argentino, um velório sem flores e uma cruz

Por Cibelih Hespanhol, inspirada em fatos reais

Buenos Aires não é uma cidade exatamente quente – ao que concordam por certo seus turistas brasileiros, acostumados ao verdadeiro calor dos trópicos. Mas é provável que aquela tarde argentina, mesmo se submetida ao cinza gelado dos ventos do sul, era sem medidas, desobediente às leis da geografia e às delicadezas de moço educado, por baixo de suas vestes sagradas, no íntimo humano em que também se queimam infernos, um sufoco incômodo para Bergoglio, vigário-geral da paróquia do Santíssimo Sacramento.

Aristides morrera. Junto com ele, um pouco das felicidades do jovem vigário que tanto admirava o velho sacerdote. Conhecido por perdoar pecados, Aristides já fora até mesmo encarregado de confessar João Paulo II, durante sua visita à Argentina. Era por certo nestes altos dons de seu colega admirado que Bergoglio pensava, enquanto se dirigia (a passos talvez apressados, em inquieto desajuste; ou talvez melancolicamente arrastados, sem pressa alguma de chegar) até o funeral do grande confessor de Buenos Aires.

Qual foi sua surpresa ao chegar ao local e ver apenas duas senhoras a velar o defunto. “Esse homem tinha perdoado os pecados de todos os sacerdotes de Buenos Aires e não tinha uma só flor” – indignou-se, resolvido a comprar, por alguns pesos, uma florida homenagem. De volta à cena do funeral, agora com um buquê em mãos (talvez de rosas brancas, de tom celestial; talvez de mimosas e simples flores do campo), Bergoglio se aproximou do caixão, recurvando-se sobre o corpo de Aristides. Deixou suas flores ao lado do morto. Mas seus pequenos olhos se detiveram em algo: um crucifixo, que os dedos gelados do sacerdote apertavam sobre o peito.

E consumou-se o ato.

“Vi o rosário e imediatamente o ladrão que todos temos em nós veio a minha mente”. Bergoglio, hoje Francisco, agiu rápido, encoberto pela distração das senhoras que por certo se dedicavam com extremo zelo ao ofício funerário do choro. “Enquanto eu colocava as flores, peguei a cruz e coloquei no bolso”. Ainda teve tempo de sussurrar ao pé do ouvido de Aristides: “só espero ter metade da misericórdia que tu tivestes”.

Essa misericórdia talvez também esperava ter da audiência de párocos de sua diocese, na última quinta-feira, dia 6, em que, já sob seu cargo papal, revelou aos colegas atônitos o pecado de seu furto. Empenhado a abrir novos ares dentro do sistema fechado da Igreja Católica, Papa Francisco é conhecido por se misturar aos fiéis nas cidades em que visita, almoçar com mendigos do Vaticano, se abster de julgar gays, celebrar a importância dos garis. E por inegável humildade que diariamente demonstra possuir, quem sabe considera que também pode ser santa alguma dose de intransigência.

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2 comentários para "O ladrão que existe dentro de nós"

  1. Ignacio Ruiz Collivadino disse:

    Adorei o que voce escrebeu Cibelih. Seu nivel de portugués é ainda difícil pra mim. Hehehe. Vou mostrar para a gente daqui o jeito que voce escreve. O livro vai ficar otimo demais, posso ficar tranquilo.
    Abracos desde Salta

  2. Maria Elizabeth Torres disse:

    Essa foi a crônica mais bela que já li na minha vida. Fiquei emocionada.
    Parabéns a Ouras Palavras por ter Cibelih Hespanhol como colaboradora,
    Parabéns Cibelih Hespanhol pelo belíssimo trabalho.

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