O que a arte intangível revela da África

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Importante intelectual de Zimbábue explica como a tradição oral, a dança, as cerimônias e o artesanato carregam infinitos significados da história do continente

Por Flora Pereira e Natan de Aquino, do Projeto Afreaka

Pathisa Nyathi, professor de ciência por formação, se tornou um dos mais reconhecidos escritores e historiadores do Zimbábue. Hoje, com 25 livros publicados, é membro do Conselho de Arte Nacional, Secretário da Cultura e expert da Unesco para Comissão Nacional de Patrimônios Culturais Intangíveis. Na entrevista com o Afreaka, Pathisa faz uma análise do presente, passado e futuro cultural tanto do Zimbábue como de todo o continente africano.

Na perspectiva de um historiador, o que você ressaltaria sobre a cultura do Zimbábue?

Para entender uma cultura por completo, é preciso conhecer a lista da Convenção da Unesco sobre PCI, Patrimônios Culturais Intangíveis, que abraça cinco domínios. O primeiro são as tradições orais: contos de fadas, rituais, músicas épicas, histórias orais. A tradição oral e linguística para perpetuar a cultura. O segundo são as artes performáticas. A arte conta a nossa história, reflete a nossa sociedade. Quando você olha para a dança, é preciso entender a mensagem por trás da dança, o patrimônio que ela carrega, ao invés do movimento, porque o movimento tem significado. É um movimento que comunica. As danças desabrocham de uma sociedade, elas a refletem ao mesmo tempo em que se constituem em uma forma de crítica, de comentário sobre si mesmo.

Se entendermos que o que vemos é apenas a ponta do iceberg, entenderemos a África melhor. Entenderemos o modo africano de ver o mundo. Isso é crítico, pois acredito que nós agimos conforme o entendimento que temos do mundo. Se o Brasil receber as nossas danças, se o mundo receber as nossas danças, que elas sejam interpretadas. Que as pessoas entendam o seu significado. Deixe que as nossas artes performáticas contem a história sobre a África, porque se elas contam a história de ontem, contam a história de hoje.

O terceiro domínio são os eventos sociais, que se caracterizam em cerimônias. Elas por si só já agrupam um certo número de formas de arte. Como por exemplo, o casamento e os festivais. O quarto é o que condiciona todos os outros porque é relativo ao conhecimento sobre o universo e natureza, em outras palavras é a sua perspectiva do mundo, o seu sistema de acreditar. E quando alguém está fazendo sua arte performática, quando está participando de um evento social, quando está usando da sua tradição oral, está empregando as suas crenças, o seu ponto de vista, a sua sabedoria sobre o universo. O quinto é o artesanato. São os produtos que você faz com a própria mão: esculturas em madeira, pedra, cerâmica, cestos etc. A ênfase não é no produto, mas na sabedoria e habilidades necessárias para fazê-lo.

Quando você olha para esses cinco domínios, você realmente cobriu todas as possibilidades em termos de arte e cultura excluindo os bens materiais, como nossos monumentos, nossos prédios e construções. Aqui estamos falando de tudo que é intangível. É preciso ter a base fundadora para entender o que é a arte, cultura, PCI, indústria cultural, economia criativa etc. Para que quando for preciso lidar com outros aspectos culturais, as pessoas entendam o que constitui o todo.

E um exemplo?

Olhe para a arquitetura da habitação tradicional africana: são todas circulares mesmo se de diferentes grupos. Isso caracteriza a África. Os dois padrões mais comuns africanos de design são o circular e o ondulado. Não importa onde você estiver: Namíbia, África do Sul, Botswana, Nigéria, mundo árabe: eles estarão presentes. Ambos são uma expressão da ideia de continuidade e fertilidade, as mais importantes da identidade africana. Vemos na nossa cerâmica, na medicina tradicional, nos desenhos nas peles e em muitos artefatos. Até quando dançamos, fazemos um círculo. E isso tem um significado. Os planetas são circulares e estão sempre em movimento. O universo está expandindo. Isso significa continuidade. E esse movimento não é retangular, a África não tinha retângulos antes da colonização. O círculo representa continuidade e a forma natural. Quando você olha para o seu próprio corpo, nós somos todos de formas circulares, redondas. Não temos nenhuma parte que forme um ângulo de 90 graus. O conceito de ondulado e fertilidade estão conectados.

Culturalmente, quais foram as passagens mais importante da história do Zimbábue?

Primeiro de tudo, a colonização. É preciso lidar com isso porque antes da colonização nós tínhamos o nosso próprio modo de viver, as nossas próprias ideologias, nossos próprios sistemas econômicos e educacionais, nossa própria espiritualidade. E daí vem a conquista em 1893. E a conquista veio com o cristianismo. Tudo foi subestimado e assim começaram as mudanças. Nós perdemos nossa independência e agora estamos usando a cultura do outro, a identidade do outro, ideias, ideologia e perspectiva do outro. O segundo momento foi a luta para recuperar a liberdade, a nossa independência perdida.

Considerando a cultura tradicional pré-colonização e a incorporação da ocidental, o que você considera ser a cultura contemporânea do Zimbábue?

Quando olhamos para a cultura, o maior problema que vejo nas pessoas é que elas procuram diferenças mais do que semelhanças. Eu não vejo a cultura desse jeito. Eu a vejo como algo universal. Todos os seres humanos nesse planeta têm música e dança. Não importa se você é branco, negro ou amarelo, você tem música e dança. Não importa qual é a sua música, qual instrumento está tocando ou como você mexe o seu corpo, o importante é ter artes performáticas. E todo o mundo as tem. Essa é a tragédia da raça humana, que se concentra nas diferenças. Todos temos famílias, não importa o grupo que você está falando. Todos temos casamentos. É uma unidade social para procriação e socialização. Mas nós damos ênfase nas coisas erradas. Sim, existirá diversidade e isso é natural e belo, mas a cultura é comum a todos. O que é diferente é a maneira de expressá-la. Para mim o que é fundamental é termos expressões culturais através das artes. E todos temos isso. E é assim que é preciso enxergar a África. Nós fazemos o que brancos, amarelos e vermelhos fazem. Mas por causa das nossas diferentes experiências históricas, a nossa arte será diferente.

Como você vê o futuro do país? Para onde está caminhando o Zimbábue?

É difícil prever o futuro. As coisas vão mudar – não se tem dúvida disso. Isso é uma coisa que é constante nesse mundo. A essência da vida é sobre mudança. Onde não tem mudança, eu acho que não tem vida. Essa é a minha filosofia. Mas, para entender o futuro, é crítico lembrar onde nasceu a violência social. O Zimbábue não inventou a violência. A natureza do imperialismo era muito violenta. E quando eles estavam implantando o seu governo, não existia democracia. Os que aqui estavam aprenderam com um sistema muito violento dos líderes brancos, que foram intransigentes e não quiseram nos dar a independência. Nós tivemos que recorrer para a luta de libertação armada. Mas quem nos proveu as armas? Foi o ocidente. Aqui foi deixado um sistema antidemocrático como legado. É preciso entender que isso criou governos e líderes rígidos. É claro que eles usam isso para legitimar sua continuidade, mas é importante lembrar que sangue desnecessário foi espalhado neste país. Nós estamos vivendo o amargo da herança da intransigência da liderança imperialista no Zimbábue.

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