Entre papos e tragos, surge outra cidade

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Crônica da noite em que Graziela Kunsch dialogou em São Paulo sobre a colonização das metrópoles e os experimentos que podem revertê-la

Por Bruna Bernacchio

“Um encontro excepcional com a artista Graziela Kunsch para uma conversa sobre utopias experimentais. Como se dá, no cotidiano e na atualidade, a transformação das cidades onde vivemos? Onde podemos encontrar pistas de uma outra cidade se formando, de um espaço diferente sendo produzido? Que diferentes projetos de cidade estão em conflito? Como artistas e arquitetos podem colaborar com movimentos sociais na construção de um outro imaginário urbano?” dizia o convite na rede.

E assim apresentava a convidada: “Além de seus projetos em performance e vídeo, Graziela Kunsch assume os papéis de ativista, curadora, editora, crítica e professora como formas de sua prática artística”.

O endereço, Rua General Jardim, 90, dizia ser de uma lanchonete, que na verdade era do Bar da Cidade, que havia perdido seu nome original, “Xangô Bar”, por ser totalmente ocupado pelos estudantes de arquitetura da Escola da Cidade, universidade localizada em prédio da frente, e que tinha total participação no evento: realizado pelo Seminário de Cultura e Realidade Contemporânea da Escola da Cidade, que faz parte oficialmente da grade curricular da universidade, mas é aberto ao público e organizado por um grupo de alunos, junto com Rafic Farah, professor, conselheiro e coordenador de comunicação da Escola.

Entre as mesas da calçada, o ambiente da conversa naturalmente brotou. Um sistema de som instalado dava voz poderosa à convidada, e uma projeção na parede do prédio da calçada oposta prometia a exposição de obras da própria autora. Graziela sentou-se de frente para a projeção e aos poucos as pessoas foram encontrando seu espaço em torno dela. Formou-se uma espécie de roda, que ultrapassava os limites do pedestre; um pequeno palco de madeira, já antes instalado ali, permitia que as mesas e cadeiras ocupassem também as ruas.

Como um estímulo inicial, a artista exibe um vídeo publicado no youtube com imagens feitas pela Polícia Militar nos dias de desocupação do Pinheirinho. Um rock pesado apresenta fotos de diversos militares pousando de braços cruzados e caras bravas, seguidas de imagens das viaturas chegando nas cidades e se aproximando em posição de tropa de choque no terreno. Ao final, uma versão moderna do hino nacional novamente mostra os oficinais, com orgulho e ostentação. “Nossos heróis”, alguém ironiza. Dos moradores, quase nenhuma representação visual, a não ser a famosa fotografia da resistência em forma de escudos e capacetes improvisados.

Para compensar, imagens do Pinheirinho antes da destruição. Visões raras, até na mídia alternativa, em meio a outras, de violência, que repetidamente apareceram. Construções humildes, mas visivelmente pensadas – com garrafas pets, hortas comunitárias e individuais, espaços de convivência comuns, igreja, creche, casa de reuniões e assembleias. Observando aquele bairro tão simpático, erguido do nada pela própria população, ficava claro o ponto essencial da questão colocado por Graziela: “Pinheirinho representava um perigo, porque criava um novo projeto de cidade, que estava também influenciando o resto do povo”.

Então, colocava ela em suas palavras, “o que eu venho trazer aqui pra vocês, estudantes de arquitetura, é como pensar outros projetos de cidade?” Há projetos sendo colocados em prática pelo poder público: a Nova Luz, por exemplo, projeto que foi modificado diversas vezes desde que deixou de ser Santa Efigênia; ou a avenida Paulista que agora tem cercas e canteiros que hoje estão extremamente mal cuidados. Vamos aceitar passivamente esses projetos de cidade? – perguntava ela.

Um exemplo contrário, na mesma avenida Paulista, de espaço que havia sido esquecido pelo projeto urbano mas que foi apropriado pela sociedade: a Praça do Ciclista. Esquina com a Consolação, o canteiro estava há alguns anos completamente abandonado. Havia apenas terra e uma estátua venezuelana, presente do vizinho à São Paulo. Em certo momento, a praça passou a ser ponto de encontro da bicicletada, toda última sexta-feira do mês, quando os ciclistas da cidade cresciam rapidamente em número e visibilidade. Nasceu daí um afeto entre o espaço e os seus novos usuários, que juntos transformaram a praça, limpando, plantando árvores e organizando também eventuais intervenções e atividades abertas.

Para Graziela, experiências como essa, propondo diferentes formas de uso do espaço público de acordo com os desejos de seus usuários, podem ser entendidas como um projeto de uma nova cidade. E não precisa ser uma imposição, algo imutável. É totalmente natural, vivo, efêmero, conforme a necessidade e ação humana, temporário ou permanente. Como o próprio encontro que ali compartilhávamos. Que era não só um novo projeto de cidade, mas um novo projeto de escola.

O clima era de empatia e total descontração. Graziela falava pouco, dando espaço aos outros presentes, incitando novos assuntos através de vídeos. Dessa vez, um produzido por ela mesma, durante ação de ativistas do Movimento Passe Livre. No Terminal Parque D. Pedro II, ela filma o resto do grupo abrindo as portas de trás de um ônibus e gritando para que todos o usuários entrem sem pagar. Outro vídeo, em que um grupo dá outro nome à placa de rua “Roberto Marinho”, e mais um, com pessoas pintando sinais de bicicleta em uma via. “desenhos de um projeto que ela desenvolveu com o arquiteto Rafi Segal, no qual eles desconstroem as rampas “antimendigo”, fazendo cortes horizontais para torná-las utilizáveis para uma pessoa se deitar.

Mas a arte por si só pode ter essa característica ativista? “Como essas práticas vão para a arte ou como volta? O registro é a única forma de fazer essa representação estética?” – pergunta um dos organizadores do evento. O afamado debate de “arte” e “não-arte”. “A produção artística é vista de uma maneira sacralizada e limitada”, coloca outro alguém. Procurando sair de uma posição de superioridade e de ter as respostas absolutas para as perguntas ali colocadas, Graziela tenta colocar sua própria experiência: houve um momento em que ela se afastou da arte para se dedicar integralmente a esses contextos sociais, e apenas recentemente retornou. Ao longo dessas vivências, observou que “quando essas coisas vão para a arte elas têm o potencial de transformar o espaço da arte”.

“Gosto de ver esse ato de usar o bar de outra forma como arte” – retoma ela – “o nosso encontro aqui opera uma transformação espacial, ainda que temporária”, “interessa pensar o acontecimento em si como arte, não seu registro, mas como um processo criativo, um fazer contínuo”. Seus trabalhos como criadora, crítica e curadora são apenas papéis, assumidos como formas de sua prática artística. Poderiam todos os ali presentes serem considerados artistas?

Subjetividade à parte, o fato é que o evento foi um experimento. Geralmente, os seminários realizados pelo grupo da Escola acontecem toda quarta-feira, às 18h, no Auditório da Aliança Francesa, que já recebeu convidados como Alexandre Delijaicov, Agnaldo Farias, Maria Rita Kehl, Tales Ab’Saber e Walter Garcia. Este, com Graziela, que fechou o ciclo deste ano, aponta para outro formato, e terá sua construção continuada no próximo ano.

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Um comentario para "Entre papos e tragos, surge outra cidade"

  1. Regina Maria Pozzobon disse:

    Muito interessante a abordagem feita por Graziela Kunsch sobre como podemos inverter a lógica de construção das cidades. Abaixo um pequeno trecho de sua conversa, quando ela fala sobre os acontecimentos no Pinheirinho.
    "Observando aquele bairro tão simpático, erguido do nada pela própria população, ficava claro o ponto essencial da questão colocado por Graziela: “Pinheirinho representava um perigo, porque criava um novo projeto de cidade, que estava também influenciando o resto do povo”."

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