“A arte digital ainda não existe; são as quebradas que vão inventá-la"

Em mesa da mostra da Estéticas da Periferia, debatedores ressaltam imensa vocação das comunidades para compartilhamento e colaboração. Também questionam: que falta para transformar tal potência em arte?
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Por Bruna Bernacchio

O nome da mesa já diz “No universo digital, o centro está em toda parte”. Mateus Subverso, criador do Edições Toró, começa contextualizando: numa “economia de dádiva”, entende-se que o conhecimento, presente e disponível para todos através da internet, é feito de forma coletiva. O movimento hip hop, por exemplo, conta ele, aprendeu a fazer fanzine com o movimento punk. Mas o centro ainda não está em toda parte e a periferia ainda não se universalizou.

Se por essência ela já tem a característica do viver em comunidade, de compartilhar saberes e afazeres, uma “vivência corporal”, como chamou Mateus, ela é então capaz de agregar um diferencial à produção da arte digital. Colocar toda a sua identidade, personalidade e tradição, em uma expressão moderna e com possibilidades infinitas. Mas a periferia ainda não desenvolveu todo esse potencial: “Ainda não se explorou como se deveria os aspectos da interatividade e manipulação dessas tecnologia […] Hoje em dia, é muito cinema e fotografia […] Falta coragem e uma discussão interna”.

Por que ainda se segue um padrão de formas e conteúdos, que reduzem a potência da periferia?. “Se achar que a máquina vai fazer tudo, vai cair na homogenização da arte”, diz Mateus, com palavras de quem já circulou por todos os cantos da arte. A internet permite que a periferia seja seu próprio centro de produção, mas a receita não deve ser repetida, e sim criada e recriada até encontrar seu próprio ponto. E aí, consolidada a estética, levada para ter visibilidade.

O encontro da técnica com a inspiração já aconteceu, analisa Cássio Quitério do SESC, nos projetos comunitários já existentes e que estão em constante transformação. Como o “Graffiti com pipoca”, que faz animações a partir de imagens de grafites, e o “Traquitanas”, cita a mediadora da mesa Thais Scabio. Mas há algo bastante importante, que impede um maior desenvolvimento dessa produção, lembra Cássio: é o desconhecimento das entranhas dos softwares. Por mais que os hackers tenham conquistado seu espaço e continuem crescendo, a programação ainda está nas mãos das grandes empresas – e elas pagam muito dinheiro para que os programadores permaneçam codificando em segredo.

“É a cultura do software”, definiu Heloisa Buarque de Hollanda. Algo que sempre foi caixa preta começa a ser desvendado no momento em que a sociedade para pra pensar aonde esta tecnologia está nos levando. Heloisa é escritora, pesquisadora da cultura periférica e digital, e criadora de projetos nessas mesmas áreas. Seus estudos apontaram dezenas de exemplos de “tentativas de literatura digital”, que jogam com milhares de mídias, formatos e caminhos, mas nenhuma essencialmente digital. “Ainda não existe arte digital”, provoca ela, concordando com Mateus, de que a periferia tem as características perfeitas para ser pioneira nessa área.

Afinal, a oportunidade de entrar em contato com o universo digital foi criada pela própria periferia, um empoderamento que transformou esse território marginalizado da sociedade brasileira. Processo este que impressionou uma jovem argentina a questionar os presentes, ao final do debate: como esses equipamentos chegaram nessas regiões? Isso não aconteceu no país dela. Algumas divergências, e os participantes da mesa chegaram a um certo consenso de que as lan houses, abertas pelos próprios moradores deram o acesso básico ao computador e à internet; e os coletivos de arte e pontos de cultura – incentivados pelo programa de Gilberto Gil no ministério da Cultura — começaram a utilizá-los como ferramenta de produção. Que estes espaços permaneçam em constante expansão, e a que a periferia vire centro; e o centro, periferia.

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2 comentários para "“A arte digital ainda não existe; são as quebradas que vão inventá-la""

  1. Cyrano Vital disse:

    concordo com o sastre. vou mais longe, a questão nem é só periferia-centro, acho até mesmo q a insistência na necessidade de desenvolver uma arte "brasileira", uma expressão erudita com elementos da identidade nacional, é um absurdo nestes tempos em q as pessoas se referenciam de modos múltiplos. nenhuma identidade de grupo deve ser referencial absoluto.

  2. talvez o problema seja esse…a idéia de que a dicotomia centro-periferia (modo estático) se resolveria invertendo a hierarquia. Por que não pensar em termos da dissolução dessa relação num espaço em que a dinâmica da rede, rizomática no desejo, invoca novos modos fluidos, modos em que descontinuidades se expressam, em que o antigo desejo de poder, da lugar a liberdade da expressão…

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