Bolívia vs. Chile: o velho conflito sul-americano

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Evo Morales ameaça levar ao Tribunal de Haia exigência boliviana por uma saída para o mar. Negociações com Santiago — que avançaram desde 2006 — foram congeladas em março

A diplomacia sul-americana escutou com apreensão o pronunciamento do presidente boliviano Evo Morales nesta quinta-feira (15), durante uma coletiva de imprensa realizada em La Paz. O líder aimará anunciou que, em fevereiro de 2012, fará uma visita ao Tribunal Internacional de Justiça das Nações Unidas, sediado em Haia, na Holanda. Além de participar da cerimônia de posse dos novos magistrados, Evo pretende obter informações sobre as exigências legais que a Bolívia precisa cumprir para mover, no seio da Corte, um processo judicial contra o Chile. O motivo, que há mais de cem anos gera controvérsia entre os dois países, é a aspiração boliviana de reaver uma saída para o mar.

Durante a Guerra do Pacífico (1879-1883), Bolívia e Peru perderam terras para o Chile. Os bolivianos foram os maiores prejudicados pelo conflito, pois viram os chilenos se apoderarem totalmente de sua região costeira. Eram 400 km de praias, que passaram para as mãos do país vizinho junto com uma extensão territorial de 120 mil km2, rica em guano, salitre e cobre — recursos naturais que motivaram os enfrentamentos. Com o fim das batalhas, La Paz e Santiago firmariam um acordo em 1904 estabelecendo o novo traçado fronteiriço de cada país. Os bolivianos, porém, jamais aceitaram a anexação territorial. Assim, em 1978, cortaram relações diplomáticas com os chilenos. Até hoje, quando querem conversar, o diálogo se realiza entre os respectivos vice-ministros de Relações Exteriores.

Em 2006, porém, uma luz havia surgido no fim do túnel. A vitória eleitoral de Evo Morales, na Bolívia, e de Michelle Bachelet, no Chile, possibilitou a formação de uma mesa de negociação permanente entre La Paz e Santiago para tratar, entre outros temas, da saída boliviana para o mar. Os países elaboraram uma agenda bilateral com 13 pontos, cujo conteúdo foi tratado com discrição, mas que também incluíam questões energéticas — sobretudo a venda de gás boliviano ao Chile. Na época, o líder aimará mostrou-se otimista com a possível resolução de “questões históricas” com o país vizinho.

Apesar de ter sido mantido em segredo, o diálogo, ainda que lentamente, parecia estar avançando. No começo do último mês de novembro, o portal de notícias Soy Arica, do Chile, repercutiu uma entrevista concedida ao jornal boliviano La Razón pelo ex-ministro chileno de Obras Públicas, Sérgio Bitar, que trabalhara para o governo de Michelle Bachelet. Bitar revelou que Santiago e La Paz estiveram a ponto de fechar um acordo. “Aventou-se a possibilidade de conceder à Bolívia um território costeiro sem soberania”, disse, revelando que também vinham sendo negociadas a localização e a extensão da área, além das “leis bolivianas que poderiam ser aplicadas na região para regular empresas e trabalhadores bolivianos na indústria, serviço, comércio e turismo”. Uma missão de diplomatas bolivianos teriam sido enviados para analisar o local. Contudo, não houve qualquer definição.

Pelo menos oficialmente, as negociações bilaterais tiveram continuidade após a derrota eleitoral de Michelle Bachelet, filiada ao Partido Socialista, para o candidato conservador Sebastián Piñera. No entanto, em março de 2011, Evo Morales, dando a entender que não havia avanços, anunciou que tinha a intenção de levar a querela para o Tribunal Internacional de Justiça — o que esfriou as conversações.

Agora, as novas declarações do presidente boliviano voltaram a incomodar os chilenos. O ministro das Relações Exteriores do Chile, Alfredo Moreno, disse nesta sexta-feira (16), em resposta a Evo: “Existem possibilidades para buscar coisas em benefício mútuo para todos os países. Porém, é a Bolívia quem deve decidir os caminhos e é a Bolívia quem sofrerá as consequências.”

Em La Paz, Evo Morales fez questão de insistir que o processo contra o Chile na Corte de Haia, caso seja impetrado, não exclui a continuidade do diálogo entre os países. “Tomara que consigamos resolver [a questão] entre nossos governos”, disse o líder aimará. “Isso está nas mãos deles, não nas nossas. O diálogo sempre estará aberto no que depender do governo boliviano.”

Mas, pelo menos no discurso, os chilenos afirmam que seus vizinhos devem escolher: ou diálogo ou Haia, jamais os dois juntos. “A Bolívia decidiu cortar as conversações bilaterais no dia 23 de março”, lembrou o cônsul-geral do Chile na Bolívia, Jorge Canelas. “Nenhum país conduz conversações sobre um determinado assunto se este assunto está radicalizado numa Corte.”

O maior argumento de Santiago — que inclusive foi reiterado pelo presidente Sebastián Piñera durante a cerimônia de constituição da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) — é o de que não existem pendências fronteiriças ou territoriais entre Bolívia e Chile. “Tudo foi definitivamente resolvido pelo tratado de paz e amizade de 1904, ou seja, celebrado faz mais de 100 anos.”

Caso a Bolívia leve a cabo sua intenção de recorrer à arbitragem internacional, não será a primeira vez que diferendos diplomáticos relacionados à Guerra do Pacífico repercutem nos dias atuais e acabam no Tribunal Internacional de Justiça. Já está em curso uma demanda movida pelo Peru contra o Chile em 2008 devido aos limites marítimos da cada um dos países. Os peruanos reclamam soberania de 67 mil km2 sobre uma zona de 90 mil km2 em sua fronteira oceânica. Lima argumenta que não existem tratados bilaterais que tratem da questão. Os chilenos, obviamente, discordam.

Antes, Argentina e Uruguai também levaram à Haia suas divergências sobre a instalação de uma usina de papel e celulose em Fray Bentos, na margem uruguaia do Rio da Prata. Moradores e movimentos sociais de Gualeguaychú, do lado argentino, acreditavam que a atividade industrial poluiria os cursos d’água binacionais, prejudicando a economia e a qualidade de vida locais.

O Uruguai, porém, prosseguiu com a produção. Em protesto, os argentinos fecharam a ponte que liga os dois países. A ação criou um desconforto entre os governos de Néstor Kirchner, já falecido, e Tabaré Vázquez, que decidiu recorrer à Haia para resolver a querela. O julgamento definitivo sairia apenas em 2010, quando governavam Cristina Fernández (Argentina) e José Mujica (Uruguai). Os uruguaios ganharam a disputa e os chefes de Estado acataram a decisão.

Em fevereiro de 2010, escrevi uma pequena reportagem para a Revista do Brasil sobre os entreveros diplomáticos então em curso na América do Sul. Ali já figuravam a saída para o mar reivindicada pela Bolívia e a disputa marítima entre Chile e Peru, além da discórdia sobre a papeleira no Uruguai, a reação continental à instalação de bases militares estadunidenses na Colômbia e a modernização das forças armadas brasileiras.—@tadeubreda

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Tadeu Breda é autor do livro O Equador é Verde — Rafael Correa e os paradigmas do desenvolvimento (Editora Elefante)

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5 comentários para "Bolívia vs. Chile: o velho conflito sul-americano"

  1. Não se pode prejudicar um povo!!!!

  2. cesar javier moscol razuri disse:

    prezados amigos los mentores intelectuais desta massacre forom os ingleses,sempre eles em todo canto os chilenos na verdade eram lacaios,peru e bolivia perderam muito as barbaridades que a milicia chilena praticou em ambos paises sao imperdoaveis as secuelas que a guerra deixou nas pessoas ate hoje
    permanecen vivas fazem bem estes povos em pleitar suas querellas na haia,tomara
    que a justiça prevalezca e o vizinho do sul e seu tutor ingles fiquem no porao da historia uma saida ao mar da bolivia sera sim de vital importancia.

  3. Luís Fernando Teixeira Canedo disse:

    Sr. Ségio Becker,
    Discordo do seu ponto de vista. A justa reinvindicação da Bolívia pela devolução dos territórios ilicitamente subtraídos pelo Chile não exclui a necessidade de buscar o seu desenvolvimento econômico por outros caminhos. Por óbvio que a saída para o mar, por si só, não resolverá os problemas econômicos da Bolívia, mas que ajudaria isso não tem dúvida. Caso você não saiba, o início do desenvolvimento do Chile deveu-se justamente pela exploração das gigantescas minas de cobre localizadas no território boliviano e que foram roubados na Guerra do Pacífico. Portanto, ainda que eu não concorde com a política econômica praticada pelo Sr. Evo Morales, ele não faz nada mais do que sua obrigação em reinvindicar a devolução dos territórios perdidos.

  4. Alexandre de Oliveira Kappaun disse:

    Caro Sr. Sérgio Becker,
    Concordo com o seu ponto de vista. Creio, no entanto, que o exemplo da Hungria como “um país desenvolvido em todos os sentidos” seja incorreto. Morei durante alguns anos em Budapeste e sou um grande admirador da Hungria, da sua cultura e do seu povo. Posso certamente afirmar que ainda falta muito para que a Hungria possa ser considerada “um país desenvolvido em todos os sentidos” (alto índice de desemprego, problemas previdenciários, desindustrialização do país com o fim do comunismo, problemas de preconceito em relação à população Roma etc…). Claro que nenhum desses problemas, na minha opinião, advêm do fato do país não ter uma saída para o mar. Todavia, até hoje existe uma nostalgia em relação a nagy Magyarország [“grande Hungria], que possuía saída para o mar e os húngaros, ainda hoje, consideram o Tratado de Trianon, que desmembrou o Reino da Hungria, criando o atual Estado Húngaro, uma verdadeira humilhação. Embora essa não seja a posição oficial do governo húngaro, não creio que se possa dizer que o povo húngaro aceite estoicamente a diminuição do seu território, incluindo a perda de sua saída para o mar. Não quero com isso, todavia, discordar da sua colocação (com a qual, aliás, concordo, como disse no início destes meus comentários). Só quero destacar que a escolha da Hungria como exemplo para confirmar o seu ponto de vista talvez tenha sido infeliz.
    Com todo respeito,
    Alexandre de Oliveira Kappaun

  5. Sergio Becker disse:

    A Suiza não tem mar , assim como a Hungria e outros paises. Eles são países muito desenvolvidos em todo sentido. Acredito que a Bolivia devia se preocupar com uma ´´saída para o desenvolvimento dos bolivianos´´ no lugar de uma saída para o mar que não levará a lugar nenhum. Ou será que uma saída ao mar acabará com o atraso da Bolivia ? O Sr Ivo Morales e seu MAS, em lugar de tentar praticar o Socialismo Totalitario Marxista (como Cuba) deviam é de praticar o caminho ao Socialismo Democrático (como o Brasil) que tem 1.000 defeitos , más é muito mais humanista.

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