"Muito poder e dinheiro estão à espera daqueles que penetram em nossas inseguranças"

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Eduardo Galeano sintetizou bem a questão ao lembrar que dizer “a droga” hoje é como era dizer “a peste” em outras épocas

A proibição das drogas se efetiva a partir de um duplo movimento. Por um lado, a ilegalidade de um mercado com tamanha demanda maximiza lucros e faz com que a regulação deste comércio se dê unicamente no campo da violência. Cria-se o que Michel Foucault chamou de “delinquência útil” “a existência de uma proibição legal cria em torno dela um campo de práticas ilegais, sobre o qual se chega a exercer controle e a tirar um lucro ilícito por meio de elementos ilegais, mas tornados manejáveis por sua organização em delinquência. Esse é um instrumento para gerir e explorar ilegalidades”.

Por outro lado, a política de combate a estas substâncias atua no sentido de fomentar o medo de um inimigo interno pronto a corromper toda a sociedade: as drogas. Como aponta o juiz argentino Raul Zaffaroni, se “fabricam” assim “falsos inimigos de guerra” para que ajam como tais, e com isso possa se fabricar a guerra: “isto serve para difundir uma espécie de ‘doutrina de segurança nacional de conjuntura política’, equivalente à sua análoga do tempo de ‘guerra suja’”.

As relações entre este sentimento de medo fabricado e as drogas são muito antigas, o que se constata pelo fato de um tipo de droga ter sido associada à palavra que antecipou em sete séculos a de “terrorista”, surgida com a Revolução Francesa, como explica Alain Labrousse:

do século XI ao XIII de nossa era, os membros de uma seita religiosa fundamentalista estabelecida entre o Irã, o Iraque e a Síria atuais, que combatiam o poder de Bagdá, bem como os cruzados vindos do Ocidente, foram chamados de hachichiyyin (consumidores de haxixe), que, por sua vez, originou a denominação de assassinos, pois, indiscriminadamente, eram lhes imputados crimes sob a influência desta droga.

Se não é nova tal fetichização da droga como substância capaz de causar o mal por si mesma, hoje este sentimento é deslocado ao portador da droga, o “traficante”, figura na qual “o discurso do medo ganha retoques inquisitoriais” com sua “demonização”, para usarmos termos do delegado de polícia civil carioca e antiproibcionista Orlando Zaccone. Obviamente dentro do rótulo de “traficante” incluem-se apenas aqueles comerciantes que operam nas zonas mais pobres da cidade, com o senso comum “esquecendo-se” dos que se beneficiam deste comércio legal em outros estratos sociais.

No livro Patas arriba, o escritor Eduardo Galeano sintetizou bem a questão ao lembrar que dizer “a droga” hoje é como era dizer “a peste” em outras épocas. No fim é disso que se trata, prossegue o escritor uruguaio: “la guerra contra las drogas és una máscara de la guerra social. Lo mismo ocurre contra la delincuencia común. Se sataniza al drogadicto y, sobre todo, al drogadicto pobre, como se sataniza al pobre que roba, para absolver a la sociedad que los genera”. Na América Latina, os delinquentes pobres são o novo inimigo interno, e os mortos na guerra às drogas são sempre muito mais numerosos do que os por conta de problemas com estas substâncias. No entanto, são elas que são encaradas como o grande problema, talvez porque, como aponta Barry Glasner, autor de A cultura do medo, livro que inspirou Michael Moore em seus documentários, “muito poder e dinheiro estão à espera daqueles que penetram em nossas inseguranças emocionais e nos fornecem substitutos simbólicos”.

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Um comentario para ""Muito poder e dinheiro estão à espera daqueles que penetram em nossas inseguranças""

  1. Paulo disse:

    Bem lembrado e comentado o paralelismo histórico. Pena que quem detém o poder decisório não aprende com a História e tendemos a repetir a ‘lição’ !!

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