Fórum Social Mundial, dez anos

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Nenhum evento para dezenas de milhares — mas quase trinta iniciativas ao longo do ano, espalhadas pelo mundo

Ao chegar a sua décima edição, o Fórum Social Mundial terá, em 2010, um formato novo. Eis algumas de suas características:

> Ao contrário do que ocorreu entre 2001 e 2003 (Porto Alegre), 2004 (Mumbai, Índia), 2005 (Porto Alegre), 2007 (Nairóbi, Quênia); e em 2009 (Belém), não será um evento único — e sim, “policêntrico”. Desde 2006, por reivindicação de alguns movimentos sociais, o FSM alterna anos de eventos concentradores e decentralizados.

> Estão previstos, ao longo de 2010, cerca de trinta eventos-FSM, espalhados pelo mundo. No Brasil, os principais ocorrerão em Porto Alegre (25 a 29/1), Salvador (29 a 31/1) e Rio de Janeiro (maio, em paralelo à Conferência Mundial das Cidades, da ONU).

> Nenhuma destas atividades será, em termos de mobilização, comparável aos fóruns únicos. No entanto, há importante novidades. Em Porto Alegre, um seminário intitulado “Dez anos depois” tentará fazer um balanço dos Fóruns Sociais e suas perspectivas futuras. Em Salvador, há esforço para um diálogo inédito entre sociedade civil e chefes de governo — da América Latina e África.

> O FSM 2011, novamente centralizado, ocorrerá em Dakar, Senegal, em janeiro do ano que vem.

> Informações mais detalhadas numa matéria que escrevi para a revista Fórum, e foi publicada na edição de novembro último. Veja na continuação deste texto.

Na era da maturidade?

Em seu 10º ano, o Fórum Social Mundial troca os megaeventos pela reflexão sobre seu futuro e atividades menores, espalhadas por muitos países. No Brasil, duas novidades: a volta a Porto Alegre, e um diálogo com o poder em Salvador

Conhecido pela tendência a reinventar a si próprio, a abandonar mesmo as fórmulas que parecem mais bem-sucedidas, o Fórum Social Mundial (FSM) prepara-se para uma nova experiência, em 2010. Será policêntrico, assim como em 2006 (no Mali, Venezuela e Paquistão) e 2008 (uma jornada de ação global, na mesma data do encerramento do Fórum de Davos). Mas vai deixar, além disso, de se concentrar num único período – para se estender no tempo e também no espaço.

A inovação começará, mais uma vez, pelo Brasil. Entre 25 e 31 de janeiro, a Grande Porto Alegre e Salvador receberão os dois primeiros “capítulos” do FSM-2010 – com características distintas e complementares, como se verá. Ao longo de todo ano, porém, haverá ao menos mais 29 eventos, tanto em países do chamado Sul do planeta (América Latina, África, mundo árabe e Ásia) quanto nos Estados Unidos e Europa (veja no boxe a relação completa e as características dos capítulos já confirmados).

Isoladamente, nenhuma das atividades será comparável – em número de participantes ou capacidade de repercutir na mídia – aos Fóruns centralizados, que já ocorreram em Porto Alegre (2001 a 2003; 2005), Mumbai (2004), Nairóbi (2007) ou Belém (2009). Um dos motivos para a mudança é cronológico. Em 2005, o Conselho Internacional do FSM decidiu que os encontros seriam concentrados numa única cidade apenas a cada dois anos.

Mas há, talvez, uma segunda razão, não assumida. Às vésperas de completar sua primeira década, o Fórum Social Mundial parece cada vez mais distante de uma Internacional de estilo leninista – e mais sintonizado com um pós-capitalismo que se constrói difundindo valores e lógicas contra-hegemônicas. Não se trata, portanto, de tramar a grande assembléia redentora, mas de espalhar por toda a parte os vírus de relações sociais mais avançadas – que, supostamente, acabarão contagiando as sociedades e minando as resistências do sistema.

Em Porto Alegre, balanço de dez anos

Os quase trinta capítulos do FSM-2010 são um sinal desta tendência, talvez pouco inconsciente, a multiplicar novidades anti-sistêmicas. O evento no Rio Grande do Sul, por exemplo, celebrará a possibilidade de reverter as hierarquias entre “centro” e “periferia”, e de construir metrópoles humanizadas. Ao contrário do que ocorreu nas edições anteriores, ele não estará concentrado em Porto Alegre. Vai se espalhar por mais cinco cidades da região metropolitana (veja boxe). Para os deslocamentos entre elas, os participantes serão convidados a servir-se… dos trens de subúrbio, cujas linhas estão se expandindo em muitas cidades brasileiras, depois de décadas de retrocesso ou estagnação.

O Acampamento Intercontinental da Juventude (AIJ), por exemplo, ficará em Lomba Grande, um distrito de Novo Hamburgo situado a pouco mais de uma hora da capital, em transporte coletivo. Alexandre Bellò, um dos facilitadores da iniciativa, espera cerca de 7 mil participantes e explica os motivos da escolha. “É um local que resiste há décadas à industrialização predatória e alienada. Lá, pratica-se de modo sistemático a reciclagem, o uso consciente da água (100% proveniente de poços artesianos), o turismo sustentável”. O convívio de milhares de jovens em Lomba Grande buscará aprofundar tais práticas. “O AIJ quer estimular as pessoas para que sejam agentes transformadores dos espaços que utilizam. Todos participantes administram, decidem e executam decisões em um nível de igualdade, sem que haja uma hierarquização do processo. A autogestão parte do princípio de que todos os indivíduos são aptos ao debate de assuntos públicos e a desenvolver soluções para os problemas que dificultem o convívio”, propõe um dos documentos publicados no site da iniciativa (www.acampamentofsm.org.br). Num outro texto, argumenta-se: “o compromisso é com a criação e difusão de alternativas que se contrapõem à lógica capitalista, através da inclusão de indivíduos e garantia de direitos”.

Embora de modo menos explícito, esta aposta na superação das sociedades de mercado por meio de mudanças de valores está presente também na atividade mais reflexiva em pauta no capítulo Grande Porto Alegre. Trata-se do seminário “Dez anos depois: desafios e propostas para outro mundo possível”, que se estenderá entre 25 e 29 de janeiro, pelas manhãs. Reunirá cerca de 4 mil pessoas, que dialogarão com ativistas e intelectuais associados, desde com o FSM desde seu início. Já confirmaram presença, entre outros, Aníbal Quijano, Eduardo Galeano, Gilmar Mauro (MST), Immanuel Wallerstein, Ladislau Dowbor, Paul Singer e Susan George.

O seminário é organizado pelo Grupo de Reflexão e Apoio ao Processo FSM (GRAP), um coletivo que reúne, entre outros, parte dos brasileiros que lançaram, em 2000, a idéia do FSM. Embora sustente que o Fórum «teve papel central em quebrar o ‘pensamento único’ e alterar ‘a paisagem política do planeta’», o documento que convoca a atividade (disponível em breve, na internet), propõe «uma reflexão mais sistemática sobre o que fomos capazes de realizar até aqui, nossos erros e acertos». O objetivo é «examinar os novos desafios com os quais nos confrontamos e projetar possíveis caminhos futuros que o FSM deverá percorrer, na desafiadora conjuntura global que se abre».

O vínculo, ao menos parcial, do seminário com a nova cultura política aparece quando se analisa em mais detalhe a estrutura do evento. O primeiro dia é dedicado a um «balanço de 10 anos» do FSM e o segundo, ao exame da conjuntura, em quatro aspectos: ambiental, econômico, politico e social. A partir de então, entram em pauta os «elementos da nova agenda». Três deles caberiam também num encontro tradicional de esquerda: «Organização do Estado e poder político», «Novo ordenamento mundial» e «Como construir hegemonia política». Nos demais, transparece a pauta de transformações que emergiu com força neste início de século: «Bens Comuns», «Sustentabilidade», «Economia e gratuidade», «Direitos e responsabilidades coletivas» e «Bem-Viver».

Salvador procura nova relação com governos

A partir de 29 de janeiro, abre-se o «capítulo Salvador» do FSM. Coincidirá com o encerramento do Fórum Econômico Mundial, que reúne em Davos (Suíça), os antigos «donos do mundo». Seus organizadores chamam-no de FSM Temático, pois seus organizadores vêem, com fio condutor do conjunto das atividades, Tolerância, Diversidade e Crise Civilizatória. Trará ao menos três novidades relevantes. A primeira é a própria chegada do grande encontro das alternativas ao Salvador. Lá, dinâmicas associadas ao FSM, como o horizontalismo, o culto à diversidade e o estímulo à autonomia entrarão em contato com particularidades típicas da Bahia – por exemplo, a valorização de negritude e o papel desempenhado pela cultura no processo de afirmação das maiorias.

Esta sinergia tem surgido com vigor nas reuniões preparatórias ao evento. Para construí-lo, formou-se um Comitê Organizador extremamente plural (algo raro, num Estado onde as tensões internas à esquerda e aos movimentos sociais são acirradas). Tal coletivo, que realiza reuniões semanais de trabalho com até setenta participantes (e plenárais quinzenais ainda mais numerosas), tem sido um laboratório onde se constroem dezenas de oficinas e seminários auto-organizados, muitos deles envolvendo diversos setores sociais, que pela primeira vez atuam em colaboração (veja algumas destas atividades no boxe).

A segunda surpresa de Salvador é a possibilidade (a ser confirmada nas próximas semanas) de um encontro inédito entre a sociedade civil planetária e o poder. A base para tanto é a conhecida emergência, na América Latina, de governos que rompem em distintos graus com o neoliberalismo e buscam diálogo com os movimentos sociais. Os organizadores do evento baiano querem abrir, com tais governantes, debates mas avançados que os estabelecidos em Fóruns anteriores (Porto Alegre-2003 e 2005; Caracas-2006; Belém-2009). Ao contrário do que ocorreu nas ocasiões anteriores, quando a fórmula adotada foi muito próxima à dos comícios, a idéia é montar uma Mesa de Diálogos e Controvérsias. Não terá formato de palanque, mas de diálogo entre iguais.

Quase quinze chefes de Estado estão sendo convidados: quase todos os da América do Sul (excetuados o colombiano Álvaro Uribe e o peruano Alán Garcia, por motivos óbvios), mais quatro africanos (os presidentes da África do Sul, Angola, Benin e Moçambique). Planeja-se assegurar a presença de um número expressivo de integrantes do Conselho Internacional do FSM. Se o projeto for bem-sucedido, o efeito simbólico será extraordinário. Desenrolada nos mesmos dias de Davos, a iniciativa baiana significará um contraponto inédito ao encontro que era, até o início do século, o grande evento global de reafirmação e difuo do «pensamento único».

O toque final estará na cultura. Salvador pretende fazer a ponte para Dakar, a capital africana (Senegal) onde ocorrerá, em janeiro de 2011, um novo FSM centralizado. Um conjunto de atividades artísticas celebrará a ponte entre a capital baiana e a Ilha de Gorée, situada no litoral senegalês. Entre os séculos 16 e 18, num momento-chave para a construção do capitalismo e da modernidade, estas localidades um papel tenebroso. Foram, respectivamente, o principal porto de entrada e de saída, no comércio de seres humanos escravizados. O capítulo Salvador sinalizará, em contrapartida, a possibilidade de um novo enlace. No instante em que velhos dogmas ideológicos e geopolíticos parecem abalados, será o sinal de que, a partir de uma nova tradição política e das relações Sul-Sul é cada vez mais possível construir um mundo novo.

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