Crônica sobre a possível Primavera Brasileira

Algo une novos protestos aos Fóruns Sociais Mundiais: é a noção de que lutas podem colocar direitos acima do capital

Protestos em 2000 contra o G8

Protestos em 2000 contra o G8

Por Marília Moschkovich

Episódio um: 500 anos de qual Brasil?

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No início do ano 2000 eu tinha 13 anos. A economia do Brasil era um pouco capenga (embora já bem melhor do que uma década antes) e devíamos muito dinheiro ao Fundo Monetário Internacional. Fazia pouco tempo que tínhamos alcançado a universalização da educação básica, e o número de analfabetos ainda era maior do que hoje. A desigualdade social e o desemprego também eram maiores. Nesse contexto, que era relativamente dramático, “celebrava-se” os supostos “500 anos” do Brasil.

A Rede Globo e empresas parceiras haviam instalado, na Avenida Paulista (vejam só!), um relógio que fazia uma contagem regressiva para o dia 22 de Abril de 2000. Um relógio ridículo, patrocinado, afirmando que os povos que viviam aqui nos séculos anteriores à chegada dos portugueses simplesmente não eram gente. Como se não fizessem parte da nossa formação. Acho (não, tenho certeza) que faltou um pouco de Darcy Ribeiro pro Roberto Marinho. Pois é.

Adivinhem o que aconteceu?

Fomos lá protestar (e, se possível, demonstrar exatamente naquele relógio, símbolo da palhaçada toda o que sentíamos em relação ao país naquele momento). Foi a primeira vez que eu vi a tropa de choque. Estava com meu irmão, que é um ano mais velho, e alguns amigos e amigas da escola. Corri muito. O coração a mil.

Quando contamos à minha mãe o que não apareceu na TV, ela se horrorizou. Não pela possibilidade de termos nos machucado. Como eu disse aqui, foi ela mesma quem me ensinou que cidadania e política a gente faz sempre arriscando a própria integridade física de alguma maneira, nos momentos mais críticos. Minha mãe se indignou com a semelhança entre nosso relato e a ação da polícia nos protestos dos quais ela participava durante o regime militar.

Mal sabíamos nós que a repressão daquele dia na Avenida Paulista, “justificada” pela polícia por conta de bexiguinhas cheias de guache (sai com água, tá, gente?) lançadas contra o relógio, era um sinal de uma movimentação política maior. Um descontentamento e um questionamento numa batalha política que a “primavera brasileira” mostra ainda estar rolando. Esse horror infelizmente voltaria em outros três episódios marcantes nos últimos 13 anos: o A20 (2001), a invasão da PM na reitoria da USP (2011) e o massacre de Pinheirinho (2012). Em paralelo, o massacre invisível da juventude negra paulista, que nunca deixou de acontecer e tem se intensificado nos últimos anos. Embora todos tenham sua importância simbólica e histórica, e todos esse eventos façam parte da insatisfação geral que nos leva às ruas hoje, é o A20 que nos mostra que nossa primavera vem se desenhando já há algum tempo.

Episódio dois: o “A20″ – Alcaralho com o FMI!

Não é à toa, amiguinhos e amiguinhas, que o “apelido” da manifestação de quinta ficou como “J13″. Não é de hoje essa maneira de marcar os nomes de grandes massacres da polícia em cima de manifestantes. No dia 20 de Abril de 2001, pouco mais de um ano depois do episódio do relógio, o modus operandi da PM voltou ainda pior. Naquele dia, diversos manifestantes “contra a globalização capitalista” reuniram-se na Avenida Paulista (ela, de novo). Manifestantes de diversas classes sociais, cores de pele, correntes, partidos, movimentos. De diversas idades. Não estive nessa manifestação, mas muitos amigos e conhecidos participaram. Uma parte razoável deles terminou no hospital depois da chegada da PM.

Adolescentes de quinze anos com fraturas, estilhaços pelo corpo, cortes, hematomas mil. Uma parte na cadeia, outra no hospital. Não havia internet, nem redes sociais para publicarmos nossos relatos e recebermos relatos dos amigos e colegas. Era no boca-a-boca, nos jornaizinhos de grêmios estudantis e informes de centros acadêmicos, nos jornais de sindicatos, nas reuniões políticas de grupos e associações. A mídia de massas jamais contou essa história. Nenhum jornalista sofreu ferimentos, dos pouquíssimo que foram cobrir o protesto.

Mas o que eram afinal essas manifestações “contra a globalização capitalista”? A “globalização” não é um fenômeno que aconteceu e ponto final? Como é que dava pra ser “contra” se parece que a globalização não foi exatamente uma escolha das pessoas? Mais importante ainda: o que isso tem a ver com a “primavera” que estamos vivendo, no mundo e no Brasil, e o descontentamento geral com os sistemas públicos, com Copa e Olimpíadas, genocídio indígena…?

A história explica:

Com o fim das ditaduras militares na América Latina, impulsionadas fortemente pela guerra fria, os primeiros governos supostamente democráticos foram bem conservadores. Por aqui, a ideia das instituições internacionais, de países hegemônicos e de grandes corporações era continuar mantendo o Brasil como um país extremamente dependente. A dependência econômica era um trunfo que mantinha a distribuição internacional de poder mais ou menos igual. Além disso, o Brasil era um mercado consumidor muito fértil, e a febre das importações (quando a economia novamente se abriu, no governo Collor) mostra que as corporações e o governo do EUA sabiam muito bem disso.

Pensando nacionalmente, a dependência econômica e a desigualdade social também mantinham a distribuição de poder no país mais ou menos igual. O fim da nossa ditadura militar não significou uma mudança substancial nos grupos ocupando o poder político e econômico, nesse primeiro momento (estão aí Sarney, que não nos deixa mentir, a hegemonia dos meios de comunicação de massaa controlados pelas mesmas famílias de antes cujas concessões foram dadas pelos ditadores, etc).

Havia, na época, uma pressão internacional muito grande sobre os países latinoamericanos, para que se voltassem aos interesses puramente econômicos e corporativos internacionais. As definições do FMI e do G8 no Fórum Econômico Mundial representavam essas diretivas que nossos governos seguiram durante esse tempo todo. proposta da ALCA, uma “área de livre comércio das Américas” faria as economias latinas serem finalmente engolidas e enterradas pela economia dos EUA.

Mas havia uma pedra no meio do caminho. Ufa.

Na América Latina a população havia passado os 30 anos anteriores lutando por direitos políticos, civis e sociais, contra seus ditadores. Era inaceitável consolidarmos nossas democracias nos baseando apenas em interesses econômicos de fora. Seria o fim de um projeto de país. Em outros contextos, as pessoas em muitos outros países (em outros continentes) perceberam que sua qualidade de vida poderia ser fortemente afetada se a preocupação dos Estados nacionais deixasse de ser o bem-estar dos cidadãos, os direitos civis básicos, etc (como vimos acontecer com os próprios EUA, país em que não há sistemas de serviço público e gratuito de saúde, educação, etc).

Organizou-se, então, o movimento “contra a globalização capitalista”. As bandeiras que bradávamos no Brasil e na América Latina eram “Fora Alca!”, “Fora FMI” e “Alcaralho com o FMI” (a mais interessante, sempre achei). Nessa época, a Argentina entrou em crise depois de abrir as pernas para o FMI, o que seguia comprovando a percepção intuitiva (e histórica) de quem militava nessas causas. Discutiu-se uma moratória geral da dívida externa por parte de todos os países latinoamericanos, proposta que foi rechaçada com força pelo governo brasileiro, comandado por FHC.

Parte desse movimento criou o “Fórum Social Mundial” justamente em oposição ao “Fórum Econômico Mundial”. Se o econômico se realizava sempre em “Davôs”, centro do mundo, o Fórum Social Mundial se realizaria sempre na “periferia” do mundo. Nos países em que o capitalismo mostrava cotidianamente suas falhas, seus problemas, seus resultados dramáticos. Tive a honra de participar de três desses eventos, em Porto Alegre, em janeiro de 2002, 2003 e 2005. Milhares de pessoas, militantes ou não, ativistas ou não, num espaço privilegiado de convivência para pensar que “um outro mundo é possível”e, afinal, que mundo seria esse.

Não sabíamos. Mas sabíamos que não queríamos aquele que estava se instaurando.

Essa história nos mostra que a “globalização capitalista” não aconteceu da maneira como aconteceu (com o Brasil podendo realizar políticas sociais como o bolsa-família, ou as políticas de cotas e expansão de universidades federais, etc) porque forças divinas assim quiseram. Essa possibilidade existiu porque, em luta, nós barramos a ALCA (sigla que meus alunos, nascidos em 1996 e 1997 nunca escutaram, graças a quem brigou por isso). Construímos os Fóruns Sociais Mundiais.

Em suma, o que dissemos, no início dos anos 2000 foi: queremos um Estado que se volte para as pessoas, e não para interesses de corporações, empresários, e “do capital” (que simboliza esse jogo perverso).

Pois me digam: não é exatamente isso que estamos afirmando agora?

Ao reivindicarmos o livre direito de circular pela cidade sem depender de dinheiro; quando os turcos reivindicam “mais parques” e “menos shoppings”; quando criticamos a Copa e as Olimpíadas; quando pedimos por um marco regulatório nas comunicações; quando lutamos para barrar o Estatuto do Nascituro; quando brigamos pelo direito das pessoas trans* à sua identidade de gênero; quando exigimos que todas as pessoas possam se casar com quem quiserem, se quiserem; quando nos recusamos a aceitar que a PM massacre as pessoas na rua; quando denunciamos o genocídio da juventude negra; quando protestamos contra a construção de uma usina que fere direitos indígenas e mata populações e culturas; quando exigimos um sistema único de saúde que funcione e atenda a demanda; quando desejamos um sistema educacional eficaz; quando buscamos ampliar o acesso à universidade:

Não é isso que estamos dizendo? Que queremos um Estado que sirva primeiro aos interesses dos cidadãos, e depois aos interesses de corporações e consumidores?

No fim das contas, parece que todo mundo já entendeu muito bem que essa não é uma luta por vinte centavos. O que precisamos entender, por fim, é que essa é uma luta para definir o que queremos do Estado. O Estado somos nós.

 

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